5 obras que me ajudaram na minha jornada autista

books about autism
 

Por Anne Quiangala


Além de ser uma Preta e Nerd de 32 anos, o diagnóstico “tardio” de transtorno do espectro autista (TEA) fez com que me sentisse deslocada, questionando as minhas dificuldades, com uma sensação de ser uma impostora tomando o lugar de “alguém que realmente precisa”, já que “cheguei até aqui” (seja lá o que for “aqui”) sem o suporte necessário (o que é uma longa história a parte).

Apesar de tudo isso ser absurdo, o “REALMENTE” é um termo chave pra revelar a força do capacitismo internalizado, o profundo desconhecimento da minha própria condição e, o pior de tudo: é chave porque há vozes altas demais questionando o porquê da busca por um diagnóstico “depois que a pior fase da vida escolar já passou”. Eu ri, porque quem desvalida sempre supõe saber mais sobre nós do que nós mesmas, então repito: “ah, pior, é?”. Ecolalia é o meu forte.

A desvalidação de profissionais da área da saúde, amigos, familiares é uma espécie de checklist que determina o quão distante essa pessoa esteve e está de você, a ponto de considerar aceitável que o desconforto de, pelo menos, metade da vida seja projetado para a próxima metade. Porque sei que a maioria das pessoas tem ideias bem estereotipadas sobre autismo - até bem pouco tempo, antes do hiperfoco, eu também não sabia quase nada a respeito - relevo alguns comentários, explico se houver espaço, e foco em entender melhor quem eu sou entre o masking (camuflagem dos traços autísticos), os marcadores de gênero, raça, classe, orientação sexual, e, por fim, a vida nesta sociedade. Afinal de contas, se o autismo é uma deficiência psicossocial e o racismo um problema estrutural temos aqui um combo de experiências, no mínimo, interessante.

Uma questão difícil na jornada de identificação como autista é que muitos termos que aparecem em listas intituladas “traços autísticos” como masking/camuflagem, sobrecarga sensorial ou explicações sem exemplos abrangentes como “stiming são movimentos corporais repetitivos para regulação” se propõem auto evidentes. Por essa razão, consumir conteúdo produzido por pessoas autistas com diferentes backgrounds, identidades e lugares sociais, comprometidas com a autoescolarização, tem sido essencial para entender melhor as minhas características dentro do espectro e aprender sobre acomodações.

Outro problema é a percepção geral de que autistas são pessoas com características e habilidades distribuídas do mesmo modo como mostram séries televisivas como The Big Bang Theory, The Good Doctor e Sherlock, todas estreladas por homens brancos “geniais”. Esse tipo de representação fortalece o uso do termos desatualizados como Asperger e “autismo de alto desempenho”, que reforçam estereótipos.

Quando se é uma pessoa racializada, LGBTQIA+, imigrante, da classe trabalhadora, com dupla ou tripla excepcionalidade e/ou com outras deficiências, é difícil encontrar personagens na cultura pop que representem sua experiência. Além disso impactar no modo como as pessoas são vistas, o modo como as pessoas interagem (ou ignoram) e dizem que você “nem parece ter”, isso causa grande prejuízo à autoimagem, uma vez que pessoas autistas diagnosticadas tardiamente podem ter encontrado profissionais despreparados que desvalidam os desafios com base em opiniões, e também já se questionarem quanto à necessidade de suporte, estereotipias, interesses específicos, legitimidade das crises e tudo mais.

Assim, tanto as imagens uniformes de autismo na cultura pop, como aquelas que apresentam maior diversidade, (por exemplo, o reality show Amor no Espectro - Netflix, 2019), pela falta de representatividade negra, reforçam o imaginário de que pessoas negras não podem ser autistas, em especial, mulheres negras. Neste sentido, me vejo totalmente nas palavras da pedagoga Luciana Viegas:

“Eu sou uma mulher negra, então todas as vezes que eu tinha uma crise de descontrole era associada a transtornos mais marginalizados. O autismo não é um transtorno marginalizado. O autismo tem raça, tem classe. Sempre que a gente fala em autismo, nós imaginamos homens brancos muito inteligentes. E aí, quando você traz isso para mulheres negras, o que sobra? Nada. Sobra a gente tentando dar conta desse processo de forma solitária. Quando eu fui pra internet conhecer outras mulheres negras autistas, vi que as histórias batiam. São várias e várias mulheres negras que passam a vida toda sofrendo com o capacitismo, o racismo, e não têm acesso ao diagnóstico” - Luciana Viegas via Portal Dráuzio Varella

Além de toda a jornada até chegarmos à investigação neuropsicológica e a obtenção do laudo e o diagnóstico psiquiátrico, pessoas adultas autistas passam por um novo portal. O pós diagnóstico é um período ambivalente, porque encontramos muitas respostas, mas é nebuloso a respeito do que fazer. A página Adultos no Espectro oferece dicas de roteiros muito interessantes, mas só conheci o projeto depois de ter me dedicado absurdamente na pesquisa que me trouxe aos livros que estão nesta lista. Cada livro trouxe uma peça importante pra que eu pudesse preencher as lacunas que as listas de traços autísticos informavam. Vamos lá!


1. Tudo sobre o amor: Novas perspectivas (Bell Hooks)




Crescer sendo tratada de modo diferente, faz com que busquemos o tempo todo as razões para isso. Algumas de nós buscam validação exterior e demoram pra entender o próprio valor; outras se apagam até desaparecerem por completo em relações consigo e com outras pessoas, mas tudo isso é resultado de definições equivocadas sobre o amor. Em Tudo sobre o amor, Bell Hooks nos propõe a honestidade radical conosco, desde a importância de nos autorrecuperar e buscar a conexão com os outros, a partir da conexão conosco. Em se tratando de uma pessoa negra, a resposta para as mazelas, sempre é o racismo. E essa certeza nos leva a Fingir e esconder outras partes de nós mesmas, quando acessamos lugares com a maioria branca ou com a maioria negra, o que acaba por cindir quem nós somos. O desamor é a norma em um mundo marcado por opressões reiteradas e internalizadas e ele nos faz desistir do amor. Embora esse livro não seja sobre autismo, pra mim, ele foi a melhor trilha de abertura e aceitação, porque só assim pude encontrar ferramentas para confrontar o capacitismo internalizado, sendo uma mulher negra, com a seriedade e proposição necessária!

2. Managing Meltdowns: Using the S.C.A.R.E.D Calming Technique with Children and Adults with Autism (Deborah Lipsky e Will Richards)



Quando comecei a pesquisar sobre autismo, tive muitas dúvidas sobre conceitos, em especial, os relacionados às crises (meltdown e shutdown) de sobrecarga sensorial. Embora seja importante listar o que são os estímulos que sobrecarregam os cinco sentidos, não é o suficiente. Aprender sobre como a ansiedade, não entendimento e pensamentos ruminativos são gatilhos de sobrecarga sensorial, me ajudou a rastrear e buscar formas de acomodação no cotidiano. Além disso, compreender o que é a sobrecarga e suas formas foi um excelente caminho para compreensão e validação das minha próprias crises. Se você buscar na internet, provavelmente encontrará muito conteúdo sobre Meltdowns (que são as crises mais externalizadas, explosivas e representadas na cultura pop). Vale observar que as crises mais explosivas são socialmente coibidas para corpos estigmatizados, a ponto de ser um perigo de morte para pessoas negras. Quanto ao Shutdown, crises mais internas (o desligamento, a dissociação, silêncio), embora seja menos comentado, também precisa ser entendido para que acomodações sejam pensadas também. Neste livro, temos a poderosa junção do conhecimento clínico de Will Richards com a perspectiva autista de Deborah Lipsky, e isso resulta numa obra que contextualiza o autismo como espectro, e ainda propõe um método de autoconhecimento que é muito útil para quem deseja entender e oferecer o melhor suporte para autistas.


3. Unmasking Autism: Discovering The New Faces of Neurodiversity (Devon Price)




Na introdução de Unmasking Autism, Devon Price compartilha conosco seu profundo sentimento de solidão, investimento total na carreira, a dificuldade em se comunicar, conectar e pertencer que o fazia se sentir diferente de um jeito, até então, inominável. A normalização desse sentimento e rotina cheia de crises, sobrecargas sensoriais, isolamento e “autossuficiência” foi direcionando sua vida para uma condição tão dolorosa que chegou ao burnout. Ele afirma que pessoas com marcadores sociais de diferença passam a “camuflar” o autismo para tentarem se encaixar no mundo neurotípico e o custo emocional geralmente é alto a ponto de levar a pessoa à investigação neuropsicológica. Ele também nos conta como o processo de investigação geralmente apaga o autismo de pessoas que não são homens brancos com características “clássicas”. Como um psicólogo autista, Price investigou com delicadeza e rigor metodológico o modo como pessoas cujos corpos e identidades extrapolam o imaginário do que é uma pessoa autista, mascaram esses traços e acabam tendo consequências psicológicas graves . Partindo de sua própria experiência e das compartilhadas nas entrevistas, o psicólogo explica detalhadamente e propõe atividades que nos ajudam a des-mascarar gradualmente. Eu diria que esse livro é uma experiência essencial pra pessoas autistas diagnosticadas na fase adulta!

4. The Secret Life of a Black Aspie: A Memoir (Anand Prahlad)




Encontrar conteúdo sobre a experiência de negritude e autismo não tem sido fácil, então encontrar The Secret life of a Black Aspie foi um presente. A escrita de Prahlad é poética de um jeito próprio, porque as imagens sinestésicas são literais, como ele nos adverte de início. Também é uma escrita generosa, porque nos permite entrar no seu universo particular, de sensações, história da família num território que foi uma plantation, a sua conexão com a ancestralidade e a natureza. Tudo isso nos ajuda a compreender o modo como a sua identidade complexa e sensível foi sendo construída a partir de tantos fatores internos e externos. Além disso, Prahlad foi diagnosticado adulto, então sua autobiografia explora as memórias com um novo filtro, em busca de um novo tipo de compreensão de si mesmo. Pra mim, conhecer a história de Anand Prahlad contribuiu para a minha própria jornada de entender como ser negra tem impacto na minha experiência autista e também o contrário.

5. The Dialectical Behavior Therapy Skills Workbook for Bipolar Disorder: Using DBT to Regain Control of Your Emotions and Your Life (Sheri Van Dijk)



Em um texto chamado My Autistic Journey Into Mindfulness, Devon Price compartilha sua experiência de constante dissociação e estresse e como a Terapia Comportamental Dialética foi útil para lidar com isso. Como eu disse acima, é comum encontrar conteúdo sobre prevenção e gerenciamento de meltdowns, mas não tanto sobre shutdowns, e estados dissociativos, então o livro de Sheri Van Dijk, embora direcionado a pessoas com diagnóstico de bipolaridade, é muito útil porque apresenta técnicas de atenção plena, que ajudam na aceitação da realidade presente e identificação de atitudes que possam ajudar a encarar as sensações e emoções turbulentas. Treinar habilidade de atenção plena é muito útil para evitar os pensamentos ruminativos, e reduzir o impacto que ansiedade, frustrações, mudanças de última hora ou informações incompletas, que engatilham situações de tempestade emocional. Aceitar a realidade e seguir em frente também contribui para uma vida mais consciente do presente, o que ajuda a curtir o momento e lembrar mais das experiências, porque é sobre estar aqui/agora. Embora pessoas autistas possam tentar escapar do presente ou se punirem pela avalanche de emoções, aprender sobre a importância ao presente pode ser o ponto chave: a atenção plena não tem como objetivo o relaxamento, mas o treino da habilidade de estar presente com mais frequência e se permitir sentir o que é ruim, mas também o prazer, a alegria o conforto e o pertencimento.


CONCLUSÃO


Uma das coisas mais legais sobre me perceber autista, foi a compreensão do meu interesse profundo e incessante por algum tema. Se eu tenho uma dúvida, não consigo parar de pesquisar, pensar e falar até cessar. Isso é o hiperfoco, e graças a ele, muito da minha vida escolar e acadêmica vem funcionado relativamente bem. Mas, graças a ele, também não saberia te dizer quantas horas estão por trás de tudo o que está escrito nesse texto. A busca por diagnóstico na fase adulta não é uma busca por rótulos, nem de “problemas”, assim como autismo não é um “superpoder”, mas sim uma deficiência num mundo construído a partir de parâmetros que excluem boa parte de nossas características. Então, eu amo que Amor no Espectro (EUA) trouxe um olhar importante para a questão do diagnóstico “tardio”: o Steve. Ele é um homem gentil, que foi diagnosticado aos 61 anos, mostrando o quanto é importante para a pessoa que é autista ter respostas sobre si independente da idade. Você não precisa entender o porquê para apoiar, mas se você tem alguma dúvida sobre a relevância e legitimidade de sua própria busca, procure se cercar de pessoas que te amem verdadeiramente. A jornada é individual, mas não precisa ser solitária!


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atualização feita em 25 de abril de 2023



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