Quadrinhos| DOPE #1 (2022)

Detalhe da capa (Dope #1)

 

Se uma mulher negra te contasse a história de sua vida, qual tipo de história você estaria pronta pra ouvir?


Por Anne Quiangala

Dedicado a todos os sobreviventes, o quadrinho Dope #1 (2022) de Edson Bortolotte, conta a história de uma professora de sociologia, que se viu desempregada durante a pandemia de Covid-19, e tentou se manter viva em um mundo que a destrói reiteradamente. Até que se tornou uma assassina. 

Logo de início, a protagonista aparece com o olho inchado, curativo e arranhões, desprotegida, como se tivesse levado uma surra. Embora, nessa passagem, apareça chorando e com uma linguagem corporal retraída, ela não se curva ao olhar presumivelmente preconceitoso de quem está lendo:

Quem se importa? [que fui a primera mulher da minha família a se formar em uma faculdade?] Provavelmente, você não! Você quer conhecer a mulher violenta, que apareceu no jornal em horário nobre, que destruiu lares e é procurada pela polícia... (DOPE, 2022, p.2) 

Ela não está errada em presumir que quem a olha naquele momento, julga sua aparência e atitudes sem considerar a estrutura rígida da sociedade brasileira, que mantém mulheres Negras na base da pirâmide em uma rede de relações e ausência de oportunidades que remonta um passado colonial, ainda que haja (uma ilusão de) escape momentâneo. Ao longo do relato, observamos o contraste entre a vida anterior, de educadora pós-graduada, e a posterior, de traficante; o elemento que mais se destaca é o uso do cabelo blackpower preto. no primeiro caso, e um tipo de loiro caindo pelos ombros, no segundo, uma negociação estética que reflete uma negociação também identitária - e profissional.



A estrutura narrativa entrega, na primera página, a culminância do caos e da violência vivenciados pela socióloga, mas sem grandes detalhes no primeiro momento. O "como" vai sendo revelado num ritmo tranquilo, espaçado, cheio de espaços vazios (na página, na casa da personagem, e na reiteração de um vazio existencial que ela sente, ao se ver sem qualquer rede de apoio sólido). Logo no início, o roteiro prima por evidenciar a subjetividade, e a luta por ter uma vida digna, num contexto devastador. É dessa forma que se cria uma proximidade e identificação da audiência com ela: perder o emprego, se ver obrigada a aderir a um subemprego que suga completamente a vida e, mesmo assim, não conseguir acessar o suficiente causa revolta pela estrutura econômica e empatia pela personagem.

Após uma sucessão de acontecimentos violentos, em que a hierarquia social é o gatilho, quem lê - por menor que seja o repertório de crítica social - consegue identificar a desigualdade social como um ciclo vicioso, perverso e intransponível para o indivíduo. Ser Negra, estar sozinha, vulnerável  e refém da negligência de um governo genocida se tornam, então, continuidades que evidenciam o quanto a vida anterior rompia com o imaginário e com a história da propria família, mas que essa mudança não é assegurada; a professora se torna assim, a representação de todo um corpo social do Brasil, que, desde o século XVI, busca ir além da sobrevivência.

O realismo do enredo reflete estatísticas atuais a respeito do aumento do número de casos de violência contra mulheres Negras, aumento da população carcerária feminina (Negra) e o empobrecimento desde a pandemia. O conteúdo, embora verossímil, é encadeado numa sequência surreal e tarantinesca de desventuras, sem cessar, como se fosse uma "má sorte". Entretanto, a ação, em contraste com a variação no traço de Bortolotte, ao longo das páginas, confere um aspecto, ora grotesco, ora suave para as personagens e situações. As cores, no geral, sólidas e texturizadas, uniformizam pessoas, cenário e coisas, reiterando ainda mais a desumanização das relações e do mundo no qual a professora transita, e em que ela é o elo mais fraco. 

As desventuras funcionam como um crescendo na sequência narrativa, à medida que mostram que a realidade brutal atinge uniformemente a mulher Preta, que é alvo de violências de todo tipo: simbólica (assédio e ameaças), física (espancamento) e patrimonial (roubo), a ponto de ultrapassar todo e qualquer limite. 

Enquanto ela luta para sobreviver como traficante, brancos transitam acima e abaixo da lei, comandando o tráfico e consumindo drogas menos marginalizadas, revelando assim, a contradição e hipocrísia da guerra às drogas. Estas, aliás, são tratadas como mais importantes que as vidas de pessoas marginalizadas, como a socióloga, que é massacrada na tentativa de comercializar a partir duma ética coerente com seu lugar social: não vender para crianças, nem para pessoas negras ou despossuídos. A diferença de poder, estruturada pelo racismo, misoginia e classismo entre  ela e o primo de sua cliente é outro ponto, que autoriza a violência e a impunidade que o beneficiam.

E é no vácuo da impunidade que surge uma alternativa violenta.

Depois de acompanharmos toda a sequência de injustiças, e acessar os sentimentos da protagonista, já estamos prontas para entender que a violência como resolução é uma solução completamente diferente daqueles que oprimem. Assim, Dope #1 entrega uma narrativa visual complexa, que nos faz sentir a dramaticidade que é ser Preta e pobre no Brasil. Se você se interessa por séries televisivas como Breaking Bad, Weeds e Dexter, acredito que o deslocamento do sujeito no centro da trama vai - REALMENTE - explodir a sua cabeça!


Clique aqui pra ler uma amostra de DOPE #1!


Ficha Técnica

Título: Dope #1
Arte, roteiro e edição: Edson Bortolotte
Publicação: Afasia Comics (Independente)
Lançamento: novembro de 2022
Páginas: 32

Referências

AGÊNCIA CÂMARA DE NOTÍCIAS. Mulheres negras são maioria das vítimas de feminicídio e as que mais sofrem com desigualdade social. Disponível em: <www.camara.leg.br/noticias/832964-mulheres-negras-sao-maioria-das-vitimas-de-feminicidio-e-as-que-mais-sofrem-com-desigualdade-social/>. Acesso em 13 de fevereiro de 2022.

DOPE. São Paulo: Afasia Comics, nº 1, nov. 2022.
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