Onde Anne Quiangala escreve:
Por Anne Quiangala
O portal Catapult tem uma coluna interessante chamada "Where we write" [Onde nós escrevemos] na seção [Don’t write alone] "Não escreva só". Compartilho contigo, meu experimento a partir desse formato!
De onde viemos?
A pandemia mudou todo mundo em termos práticos. Antes, nossos rituais matinais poderiam ser cronometrados, desde o soar do despertador, tomar banho enquanto o café era preparado, a torcida para o ônibus não atrasar, não quebrar, não desistir de passar. Além disso, verificar as chaves, desligar a cafeteira (já pensou, ter que voltar porque a chave está na porta?) e torcer para ter lembrado de fechar as janelas, porque a Alexa disse que há 75% de chance de chover. E, tudo isso antes das sete da manhã?
Entendo perfeitamente quem odeia home office, porque, sinceramente, a maior parte de nós - os 99% da humanidade - enfrentamos problemas no trabalho que não são bloqueados na modalidade remota, e, muitos de nós sequer temos equipamentos ou internet via fibra-ótica. Entre os 99%, nós ainda nos dividimos entre quem pode se adaptar a uma rotina saudável, ergonômica e psicologicamente segura, e aquela parcela que soma à jornada de trabalho, ainda mais essa camada desafiadora.
Pessoalmente, ao longo de 2020, acreditei que não estava tão impactada pelo isolamento, mesmo numa rotina intensiva de lives e vivendo na residência de pouco mais de 20m². Tudo isso porque vinha duma sequência de injustiças trabalhistas, e acreditava estar - finalmente - reavendo o tempo de qualidade em casa, constantemente roubado pelo trabalho presencial, transporte público, folha de ponto… E foi esse contraste entre o presencial e o on-line que me fez perceber o quanto a pandemia mudou o ambiente e o modo como trabalhamos de forma radical.
Todo setup começa In Media Res
Segundo a sábia Wikipedia, "In medias res é uma técnica literária em que a narrativa começa no meio da história, em vez de no início” , o que me leva a pensar que a história de qualquer estação de trabalho, é contada a partir de algum ponto no meio da trajetória.
A propósito, você já parou para pensar que sua estação de trabalho é sempre um trabalho em andamento? A tecnologia não espera, atualizações são sempre bem-vindas, seu caderno ou caneta sempre acabam, há sempre uma cadeira, um aroma ou lâmpada que pode trazer mais conforto.
Quando montei o setup gamer para lives direto do Xbox One, com equipamentos satisfatórios e algumas gambiarras (a câmera de ação na função de webcam, por exemplo), eu não podia estar mais feliz. O que é justo, considerando que criei um contexto confortável para trabalhar. Entretanto, o que não me dei conta naquele momento era o quanto o hábito de gambiarra faz parecer que não há outro caminho senão a criatividade adaptativa. Assim, a furtividade no tal modo sobrevivência, deixa de ser uma escolha e se torna o limite da nossa imaginação.
Então, numa reunião, me perguntaram: “Por que você joga algo tão antigo como Diablo III?” e mais “Você toparia se tornar uma PC Gamer?”. Ambas as perguntas me surpreenderam porque havia ali uma proposta de mudança radical: eu jogava Diablo porque é uma franquia que eu amo. Mas, de fato, eu não imaginava voltar ser uma PC gamer em meio a uma crise no mercado de eletrônicos. Foi assim que começou a minha jornada em andamento: a Intel e a Nvidia se juntaram para me enviar um PC gamer robusto, que me possibilitaria fazer tudo com tranquilidade.
Foi essa mudança que me abriu para a possibilidade de unir o melhor dos dois mundos: o consumo consciente (foco em atender às necessidades) e a gambiarra como escolha.
Um exemplo de gambiarra, no meu setup atual, são as dobradiças que conectei com parafusos sem ponta para servirem como suportes para fones de ouvido. Isso tanto economiza espaço sobre a mesa como o gasto com uma bugiganga cara. Do lado esquerdo, abaixo da mesa, fica o fone com led, para não ter fio me atravessando. Do lado oposto, ficam os fones bluetooth. Não fica tudo de um lado só, porque além do gabinete, há o braço articulado do microfone HyperX Quad S e o fato de ser uma destra que usa mouse do lado esquerdo demanda maior equilíbrio na área próxima aos braços.
Acredito que equilibrar as necessidades tecnológicas e de conforto com o “faça você mesma” é um exercício de autonomia imprescindível, porque o seu espaço de trabalho precisa ser confortável e adequado aos seus hábitos. A disposição não deve servir apenas à estética, mas ao modo como você pretende executar as tarefas.
Muita gente pode perguntar sobre “gerenciamento de fios” ou “cooler de led” ou mesmo pressionar para que você faça upgrades desnecessários na placa de vídeo ou processador, mas é importante sempre se perguntar: o que eu preciso? Ter recurso para investir não significa “ter que” investir.
A área onde escrevo é uma mesa comprida, onde consigo unir o melhor do mundo gamer, streamar, estudar e consumir conteúdo. Para adequar tudo isso, em ambos os lados há anéis de luz (ring light) cobertos com papel manteiga para quebrar um pouco a luz, que mesmo indireta, cansa demais os olhos.
O gabinete fica do lado esquerdo da mesa, e tem uma linha transversal de LED que costumo por na cor ou cores em conformidade com o modo como eu me sinto. Por dentro, é uma máquina equilibrada, com um processador potente o suficiente (Intel Core i5) para sustentar uma boa placa de vídeo (Nvidia RTX 2060) para gravar, editar, renderizar e jogar. E, por falar em jogo, uso um cabo USB de cerca de dois metros para conectar o controle de Xbox One.
Você vai notar que meu teclado gamer (de membrana) é usado mais para digitar, do que para jogos. Ele faz parte de um kit, que vem com o mouse, mas eu prefiro o mouse bluetooth roxo - não apenas porque é roxo, mas - porque é mais adequado ao tamanho da minha mão e sem tantas funcionalidades como milhares de cliques, milhares de modos, milhares de cores mudando o tempo todo. No fim de tarde, sinto falta sim duma luz no mouse, mas entre o arco-íris distrativo e a escuridão - neste caso - ganha a escuridão.
O meu monitor principal é uma TV de 35” (que só se torna smart os cabos), porque acho muito melhor para escrever e revisar textos. As cores são bonitas e o modo Cinema, somado à distância, dá maior conforto aos olhos. Abaixo dele, colei umas notas autoadesivas pra me lembrarem de “escrever alguma coisa”, “fazer algo criativo/esquecer a inspiração” e “escrever (antes) com a porta fechada”. Já o monitor auxiliar é bem menor, mas funciona perfeitamente para acompanhar outros processos, sem perder o foco.
A verdade é que são muitas canecas de chá, café e garrafas d’água para evitar a procrastinação e manter o corpo hidratado. Há duas canecas que uso para guardar materiais de escrita analógica. A da esquerda sofreu um acidente há décadas (foi derrubada por uma visita inconveniente do segundo andar) e perdeu a “asa”. Mantenho na minha mesa porque foi um presente dado pelos meus avós paternos, cruzou o oceano atlântico, e o “grande felino da Africa” me lembra desta conexão. Nela, guardo uma imensidão de lápis e lapiseiras e canetas de nanquim. Já a caneca da direita, da Batwoman dos novos 52, a mais legal de todas, eu mandei fazer porque é uma heroína do segundo escalão da DC (talvez até terceiro) e nem o Ebay vende tais souvenires. Nela guardo canetas, marcadores, tesouras e o (novo) estilete.
À esquerda da caneca “Grandes Felinos”, há uma pilha de notas autoadesivas de diversos tamanhos, caderneta de anotações sobre a pesquisa de doutorado, as zines que tenho feito e pequenos papéis de rascunho, pois tudo começa no papel.
Por fim, o Xbox voltou para a mesa, assim, também voltamos às lives direto do console. Essa mudança sintetiza a necessidade de transformar pouco espaço em algo versátil, funcional, responsivo e ideal para a produtividade.
Afinal, o que isso diz sobre o trabalho que faço aqui?
Fora das lives, o meu desejo de voltar a escrever me levou ao entendimento de que preciso reconstruir um processo, mas também criar algo novo, como os argonautas. O barco segue seu rumo - porque navegar é preciso - enquanto as tábuas de madeira precisam ser trocadas. Eu costumava ser uma escritora, sem preciosismo sobre “onde” escrevia. Agora, é a partir do espaço físico confortável, com iluminação indireta amarelada, incenso, um pouco de trip hop, chá, água e restrição de tempo, que crio uma ideia prática de que escrever é hábito - não talento, nem inspiração.
“Eu costumava achar fácil” é um ponto de partida que me ajuda a enfrentar a página virtual que paira, enorme, à minha frente, em geral, no Notion. A parte divertida da escrita começa entre o teclado e eu, na capa midori em que residem o caderno onde desenho, o caderno onde resmungo (diário) e o caderno de escrita, no qual puxo uma infinidade de setas para testar as conexões entre ideias. Começo o esqueleto revisitando qualquer nota que eu possa ter feito recentemente, para inserir no mapa mental, selecionar com marcador colorido o que é importante e decidir como se conecta na forma e textura do texto.
Percebo que o campo intersticial, entre o mundo estético e consumista que os gamers habitam e a lógica da gambiara, a gente pode sempre encontrar um equilíbrio que é a busca legítima por conforto. Vale lembrar que a estética também é válida, quando pensamos em estação de trabalho. Se podemos escolher comprar, realocar ou reutilizar algo mais bonito, por que não? Não à toa, prefiro um teclado com iluminação colorida, a luz do gabinete rosa e papéis de parede na paleta que me mais me apetece. Tudo isso cria um contexto acolhedor de lar, que é o que mais precisamos para sessões de leitura e escrita focada. Graças a esse conforto, insisto em “escrever alguma coisa” e desisto de fugir!
Uma estação de trabalho é sempre um trabalho em andamento, e falar sobre ela é sempre o recorte no meio dum processo sem final definitivo. A magia é essa! Aprendi que uma rotina de produção de conteúdo, freela, doutorado e trabalho, para mim, demandam grande flexibilidade, que deve ser refletida no espaço físico. É a partir disso que voltei a ser uma escritora, que, entre uma caneca de chá e outra de água, está construindo seu retorno pra casa: escrevendo.
Comente!