Manual de boas práticas acadêmicas dissidentes


Um manual de boas práticas acadêmicas dissidentes serve para o Simpósio, a Universidade e, claro, para viver na internet, por isso, elaboramos a nossa versão!
A importância de um manual de boas práticas na perspectiva dissidente
Etiqueta acadêmica é um conjunto de “leis não escritas” que regem a convivência no ambiente de ensino. Isso inclui uma série de elementos verbais e não verbais, desde a forma adequada de iniciar uma pergunta, até o tipo de vestimenta que expresse uma sofisticação e estilo específicos. Na verdade, o próprio sentido de “etiqueta” já informa que estamos, em geral, lidando com um contexto “de corte”, no qual “parecer inteligente” ou “abastado” tem grande relevância no modo como alguém é ouvido ou ignorado, além de como as relações são estabelecidas. Conforme a nossa teoria e prática dissidente, em vez de usar o termo “etiqueta”, optamos por nomear as diretrizes do Simpósio Pretaenerd como “Manual de boas práticas acadêmicas dissidentes”.
Antes de prosseguirmos, é importante pontuar o objetivo de um manual de boas práticas acadêmicas centrado na experiência de pessoas dissidentes, ou seja, qualquer “corpo-mente” (Walker, 2021) não-normativo. Nós não desejamos formatar o comportamento de ninguém e nem definir parâmetros de normalidade. Na verdade, o nosso manual de boas práticas acadêmicas dissidentes intenta criar um ambiente seguro, horizontalizado e o mais acessível possível, a partir de um alicerce conceitual dissidente. Por isso, em vez de uma lista de regras, propomos tópicos com sugestões contextualizadas.
Entrando num mundo que não foi construído pra nós
A professora universitária e coach de escrita, Cathy Mazak, inicia o seu livro Making Time to Write (2022) com uma reflexão importante sobre o fato de instituições de ensino superior serem espaços construídos para manter mulheres, pessoas não-binárias e outras minorias sociais excluídas. Ela afirma que “o modo como a cultura da academia é organizada torna isso difícil para você” (Mazak, 2022, Local 70). Antes que isso pareça um mero sentimento de perseguição, a autora explica que as demandas burocráticas e de escrita causam stress a qualquer pessoa, mas se você é outsider, isso é agravado por uma luta para corresponder a padrões profissionais (implícitos) que são tratados como neutros (masculinos, brancos, abastados, heteronormativos e sem deficiência).
Assim, o nosso primeiro impulso, ao entrar num mundo que não foi contruído pressupondo que existimos, é o de mimetizar “o que eles fazem”, isso é, escrever todos os dias, horas à fio, comprometer finais de semana, se sobrecaregar com o trabalho e priorizar o “espírito” em detrimento do “corpo”. Porém, se fazemos isso, estamos nos sobrecarregando, afetando a nossa saúde e comprometendo a nossa existência, exatamente como a lógica racista, capacitista e patriarcal “deseja”. Longe de culpar a vítima, essa reflexão tem em vista perguntar: como podemos seguir esses padrões comportamentais, se cuidamos de outras pessoas, se temos que lidar com trabalhos não-remunerados, labor emocional e violências estruturais?
A resposta é simples: não podemos. Não é sustentável… mas isso também não é o fim do mundo. Muitas de nós estamos encontrando caminhos alternativos.
Se você é uma pessoa que vivencia violências, há grande chance de o mundo acadêmico cobrar de você, tanto que corresponda àqueles padrões como se torne um arauto da cultura acadêmica tradicional. Não é à toa que, muitas vezes, assistimos mulheres, pessoas negras e da classe trabalhadora sendo “as mais rigorosas avaliando o trabalho de semelhantes”. Nesse contexto, o sentido de “rigor” não corresponde à atenção aos detalhes, mas sim às performances de violência, que causam constrangimento, sem contribuir com o trabalho.
Qual tipo de professora, pesquisadora ou debatedora você deseja ser?
1. Se nós interpretarmos “o policial mau”, quem está sendo escalado pra ser o “policial bom”? Uma pessoa mais dentro do padrão é melhor recebida e seus erros tendem a ser ignorados – mesmo se ela interpretar o “policial mau” e isso não é apenas sobre carisma. Sabemos que a experiência de ser dissidente é cansativa, independente de estarmos na posição de avaliadoras ou de ter o trabalho avaliado, mas precisamos ter atenção especial à nossa própria intencionalidade, quando avaliamos o trabalho de alguém (sim, mesmo na forma de texto!).
1.1. Jamais confunda rigor e assertividade com falta de cuidado com quem recebe a mensagem, especialmente, se você se dirige a uma pessoa marginalizada. Rigor é atenção aos detalhes, é usar critérios de avaliação justos, de modo a considerar, respeitosamente, o trabalho da outra pessoa (ênfase em “pessoa” porque o outro é “gente” com sentimentos iguais aos seus!). Assertividade é ir direto ao ponto, focar nos aspectos objetivos do trabalho (dando exemplos do problema e de soluções). Tanto o rigor como a assertividade são modos de reconhecer e respeitar o trabalho avaliado em seus pontos fortes e fragilidades.
2. Sendo mulheres, pessoas racializada e autistas, é comum nos definirem como “arrogantes”, “pedantes”, “sem emoção” e “cheias de si”, porque é esperado de nós uma submissão voluntária, além de passividade e um comportamento a partir de parâmetros brancos, burgueses, heterossexuais e neurotípicos. Entretanto, isso não nos exime de refletir sobre o ítem 1.1. E sim, como também somos ensinadas a agir conforme os parâmetros coloniais, muitas vezes, reproduzimos os padrões sem nos darmos conta. Modos de evitar isso são: estudar sobre imagens de controle (Collins, 2019), refletir de modo crítico sobre as nossas ações (autocrítica) e se apropriar dos princípios da linguagem não-violenta (CNV). Se você organiza os seus pensamentos tendo em mente o modo como isso pode ser interpretado pela outra pessoa, provavelmente, você:
2.1. Não vai interromper a fala de outra pessoa. Quando nós estamos em situação de estresse ou de muita animação em uma conversa, pode acontecer de invadirmos a fala da outra pessoa antes do término, seja para concordar, acrescentar informações ou discordar. Note que: se você não ouviu toda a ideia, com atenção e abertura, ao discordar, você já está “atravessando” a outra pessoa , o que não é nada respeitoso. Se é difícil compreender o porquê, imagine alguém desconsiderando as suas ideias “passando por cima” delas e impondo outra direção ao debate.

Como definir a ordem da fala, conforme as práticas dissidentes?
Boas práticas acadêmicas para pessoas dissidentes significa ter atenção ao que significa ser dissidente, mas também à valorização de outras perspectivas.
2.2. Dê preferência para à iniciativa de comunicação (oralidade, digitação, LIBRAS) de mulheres, pessoas trans, com deficiência, travestis, racializadas. Se você for uma pessoa branca e/ou cisgênero, se atente às pessoas ao seu redor, antes de perguntar, discordar ou acrescentar. Sujeitos de grupos historicamente ignorados já carregam experiências de sileciamento dolorosas. Podemos fazer a nossa parte na mudança dessa cultura de silenciamento dando a preferência e estando realmente atentas às outras pessoas (mas não adianta dar a preferência com a mente focada na sua vez de falar!).
2.3. “Falar por cima” de outra pessoa (com a voz, sinais ou ignorando o texto) é uma forma de silenciamento. Por um lado, pode ser uma dificuldade no controle inibitório, mas essa atitude impulsiva (geralmente associada aos prejuízos sociais enfrentados por pessoas neurodivergentes), também pode reproduzir uma prática colonial. Antes de falar, tenha certeza de que considerou todo o enunciado da outra pessoa e dialogue com o que ela disse.
2.4. Sobre o controle inibitório: se você tem dificuldade em aguardar a sua vez de expressar ideias, nós sugerimos que você anote as ideias, escute o enunciado com atenção, respire fundo e aguarde a sua vez de compartilhar.
2.5. Se você tem dificuldades com os atravessamentos, possivelmente, isso é resposta a uma repetição sistemática de eventos semelhantes e é importante refletir sobre isso. Fato é que, nem sempre, quem atravessa notará o seu silêncio ou gestos que demonstrem o seu descontentamento, especialmente, se essa pessoa for neurodivergente. Porém, para evitar que essa dor se torne uma atitude capacitista, nós recomendamos que não fale junto; inclusive, falar mais alto e junto com outra pessoa dificulta a legendagem automática e causa desconforto em pessoas com sensibilidade auditiva e misofonia.
2.6. Mas o que fazer, quando alguém socialmente empoderado me atravessar propositalmente? Depende de como você se sente quanto a isso. Se você tiver comandando o evento, interrompa: corte o microfone, silencie na chamada de video, envie para a sala de espera ou direto para o banimento, conforme a gravidade do que é dito. Se você for participante e notar a conivência de outras pessoas, apoie o cotovelo e segure a testa, vire de costas ou se levante e deixe o ambiente. Outra forma é aguardar a pessoa falar e, na sua vez, ignorar a consideração que atravessou e dizer “como eu estava dizendo…” e retomar de onde parou.
2.7. Misofonia é uma sensibilidade à ruídos que desencadeia reações emocionais, físicas e emocionais desagradáveis. Para garantir a acessibilidade, evite microfonia, batuques, áudios sem fone e com o volume alto ou se expressar de modo estridente. Também recomendamos não usar caixa alta (texto em letra maíuscula) (Lemos, 2018).
2.8. Sempre que não estiver falando, deixe o microfone desligado. Há modelos de microfone os quais é possível ativar no próprio dispositivo e, nesse caso, não precisa mudar na plataforma de webconferência. O importante aqui é não “vazar o som”.
2.9. Se você é neurodivergente e sua atividade de autoestimulação causa barulho (bater o pé, batucar, ruídos vocais ou fidget toy que faça barulho), se atente ao ambiente e em como isso impacta as outras pessoas. Se for online, apenas mute o microfone. Caso a atividade seja presencial, busque um comportamento substitutivo (fidget toy silencioso, como o Pop it, por exemplo). Você não precisa mascarar a sua autoestimulação (stimming) para pertencer à uma comunidade dissidente, mas precisa ter em mente que precisamos ajustar as nossas demandas para que todo mundo se sinta confortável.
2.10. Apresentação acessível significa preparar, desde o inicio todo, o conteúdo levando em consideração o modo de evitar a exclusão de pessoas idosas, surdas, com baixa visão, deficiência intelectual, autistas, pessoas com altas habilidades e toda a sorte de pessoas dissidentes. De início, não é fácil, mas aprenda a usar linguagem neutra, a fazer a descrição alternativa de imagens, de si mesmo, usar ferramentas com legendagem automática e a confeccionar slides e roteiro de apresentação a partir desse parâmetro. Há sempre o que aprender, o importante é começar logo!
2.11. Pode parecer óbvio, mas é importante lembrar: ao submeter um trabalho, se comprometa em apresentar esse tema, esse trabalho que foi aceito. Você pode sim ter refletido e chegado a diferentes elementos, mas o essencial precisa ser o conteúdo aprovado. O mesmo vale para a sessão de perguntas: se te perguntarem algo, responda à pergunta, não faça palestra, não “ganhe tempo”, não ignore quem perguntou e seja respeitosa com o tempo reservado a você, para outras pessoas participarem/perguntarem também.
Aprender a se expressar e aprender a se conectar com o outro
Em eventos acadêmicos tradicionais, não é raro nos depararmos cenas de pessoas avançando o tempo estipulado, atrazos não justificados, falas autoritárias, gente “ignorando” ou “errando” pronomes, questionamentos que exploram as inseguranças alheias e situações de humilhação pública. Para muitos, sobreviver a isso é um distintivo de bravura, pois acreditam que ser inacessível garante valor e qualidade. Por quê?
Porque a cultura, em geral, é estruturada para que pessoas LGBTQIAPN+, racializadas, trabalhadoras e mulheres “não encaixem” (Mazak, 2022). Uma forma de “desencaixar alguém” é empurrar pra fora, literalmente, mas existem outras sutis, como desconsiderar, silenciar e criticar de forma grosseira e sem fundamentação teórico-metodológica, apenas para causar dúvida. Todos esses “nãos” alimentam uma voz interior que nos descredibiliza e nos faz acreditar que não deveríamos estar fazendo aquilo e, sim sentir vergonha (Boyd, 2022). Como escapar disso?
A professora Christiane Lemos (2018, p. 32) recomenda que:
As críticas devem ser feitas discretamente, em mensagens privadas.
Evite constrangimentos para a pessoa que vai receber esta mensagem e saiba como pontuar essa crítica, para que ela não seja vista como algo negativo ou tenha um efeito destrutivo para o receptor.
Há contextos acadêmicos institucionalizados que questionam essa cultura de exclusão, na prática, criando mecanismos de acolhimento, desenvolvimento de habilidades e diálogo. Se você deseja ingressar numa universidade, engaje e fortaleça as iniciativas que se preocupam com acessibilidade, respeito e horizontalidade. Projetos de extensão (ex: Writing HUB/Ateliê Literário, na Uerj), grupos de pesquisa (ex: RAJ, na UnB) e de estudos (ex: TECER, na UFMG) proporcionam espaços de fortalecimento da autoestima intelectual e de construção do conhecimento de forma coletiva.
Sem dúvida, o Projeto Brasil Afroatitude (UnB), foi o primeiro espaço na universidade onde pude ter a experiência de acolhimento, conhecer e aprender com pessoas de diferentes cursos. Foi onde tive contato com os primeiros textos e discussões sobre raça na perspectiva de jovens negras e negros, fora do meu ambiente familiar. Assim, em diálogo com cada uma das propostas acima, com apoio da comunidade burning heller e alicerçada pela pensadora Beatriz Nascimento (in Ratts, 2007), passei a pensar num espaço informal de ensino-aprendizagem virtual fundamentado no senso de coletividade: a Pretaenerd Academy.
3. A Pretaenerd Academy é um espaço virtual, acessível e seguro, para conversas sobre cultura pop de forma crítica e com fundamentação teórica criado em 2020.
3.1. Segundo a historiadora Beatriz Nascimento: “o quilombo é um avanço, é produzir ou reproduzir um momento de paz. Quilombo é um guerreiro quando precisa ser um guerreiro. E também é o recuo se a luta não é necessária. É uma sapiência, uma sabedoria. A comunidade de vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias de destruição” (Nascimento in Barreto, 2020, p. 5). Não defino a Pretaenerd Academy como quilombo (para não contribuir com o esvaziamento de conceitos), acredito que o nosso espaço seja profundamente inspirado pela definição da historiadora. Nesse lugar virtual, podemos vivenciar um respeito, paz, horizontalidade e acolhimento que, geralmente, não estão disponíveis para nós no “mundo exterior”.
3.2. Pretaenerd Academy tem como objetivo presentificar uma ética que remeta à definição de Nascimento conforme descrito no ítem 3.1. Entretanto, isso só se torna possível por meio da aderência de outras pessoas e de suas ações coerentes. Um lugar feliz, de paz e de resistência é um ambiente no qual repensamos as nossas atitudes e ideas. Se você é feminista, se você é antirracista e anticapacitista, aja como tal: se responsabilize pelo seu vocabulário e pela forma como trata as pessoas. Não tenha como base discursiva informações conflitantes, ironia e eufemismo. A objetividade na comunicação é uma atitude que torna o diálogo acessível. Teoria e prática, nesse sentido, devem caminhar juntas. Não adianta o discurso sem a prática e nem o oposto.
3.3. Respeito também significa reconhecer a importância do tempo de outras pessoas. Seja pontual, considerando que a hora exata, geralmente, já é um atraso. Respeite o tempo delimitado para a sua fala e o das outras pessoas. O tempo médio de apresentações acadêmicas é de 15 minutos, mas no Simpósio, aumentamos para 20 para acolher pessoas prolixas e garantir que ninguém precise acelerar a fala. Então ensaie o máximo possível para não criar um clima desconfortável para você e nem para as demais pessoas.
3.4. Evite acelerar a fala, porque isso dificulta o entendimento de uma parcela considerável do público. Falar rápido dificulta a legendagem automática e o trabalho de intérpretes de LIBRAS, então respire fundo e se concentra no principal: a conversa.
3.5. Quando se comunicar, opte pelo uso de uma linguagem simples (plain language). Para isso, procure usar frases curtas, em ordem direta (sujeito-predicado) e foque na objetividade. Evite usar termos em outras línguas, jargões ou palavras incomuns do português, sempre que possível. Caso seja mesmo necessário, explique e traduza o termo. Essa prática garante o acesso de pessoas de diferentes idades, contextos e competências participarem de conversas sobre temas complexos sem serem deixadas para trás.

3.6. Não monopolize o debate, mesmo que você saiba muito do assunto. Em vez de oferecer todas as respostas, pergunte honestamente e procure outros modos de abordar o tema que você já sabe. Uma forma de focar na partilha é ajudar alguém com dificuldade com o tema, criar tutoriais e listas. Uma dica: se você acredita que tem muito a ensinar, mude a sua atenção para o que você ainda pode aprender.
3.7. Espere sempre o melhor, mas se prepare para o pior. Muitas vezes, por nervosismo mesmo, nós agimos de forma incoveniente ou diferente do que queremos: dizemos uma frase que não representa o que pensamos, gaguejamos, trocamos letras e esquecemos palavras… e tudo bem! Respire fundo, tome o seu tempo e retome. Por isso, é importante se planejar, treinar várias vezes, evitar se desesperar ou ficar presa no erro. Considere que o público é constituído por pessoas com sentimentos e desafios semelhantes aos seus, portanto, comprederão o seu desafio. As vezes, as pessoas agem de forma maldosa enquanto falamos, mas geralmente é a minoria. Foque a sua atenção em conversar com as pessoas interessadas!
3.8. Prepare a sua apresentação com antecedência e, busque por um plano alternativo, caso algo saia do seu controle. Faça um roteiro à mão ou imprima a versão do texto que será lido, mas não dependa apenas de um recurso, especialmente, se for equipamento eletrônico. Se for usar um Data Show ou televisão em instituições que você desconhece, procure salvar o arquivo de apresentação em diferentes formatos para garantir que ele seja compatível com o equipamento.
3.9. Caso seja uma conferência online, teste o seu equipamento com antecedência e, faça um teste de velocidade de internet, pelo menos, 10minutos antes do evento. Caso haja qualquer instabilidade, dificuldade com links ou de outra natureza, informe à Organização imediatamente. Teste o enquadramento da câmera e garanta que as suas roupas são confortáveis, Evite entrar numa chamada com microfone e câmera abertos, ou mesmo testar durante a chamada, porque você pode acabar interrompendo alguém.
3.10. Se você optar por ler o trabalho escrito, lembre-se de ensaiar e trabalhar bem o ritmo, a dicção, o volume e a entonação. Grave o ensaio e verifique os pontos que precisam de ajuste. Uma entonação sem variações, ênfase e algumas pausas torna mais desafiador manter a atenção do público. Então, se for possível projetar o texto ou projetar imagens que exemplifiquem as ideias, faça isso, pois oponto de ancoragem possibilita que o público neurodivergente consiga acompanhar melhor as suas ideias.
3,11. Apresentar um trabalho é propor uma conversa sobre um tema que você tem familiaridade, portanto, tenha abertura para conversar com pessoas que estão entrando em contato pela primeira vez. Também é importante ter paciência com as pessoas que acreditam dominar o assunto e acabam monopolizando o diálogo.
3.12. As vezes, as pessoas não entendem o significado de construção colaborativa do conhecimento e desconhece a ética de quilombo e, em vez de contribuir, elas desqualificam o trabalho das outras. Esse tipo de situação pode nos causar ressentimento, mas é preciso ir além dele e compreender a situação. A pessoa que usa um espaço de conhecimento para agredir, na verdade, age a partir de parâmetros colonialistas bem-estabelecidos no senso comum. Das duas uma: ou é alguém com muito poder constrangendo para sujeitar quem ele considera inferior; ou é alguém que não se beneficia com a hierarquia social, mas se sente vitorioso machucando alguém, assim como foi machucado. Nenhum dos dois casos é culpa da vítima em questão e compreender não muda o fato de que são atitudes inaceitáveis.
3.13. Cumprimente as pessoas e sempre se apresente, mesmo que seja uma apresentação geral e impessoal. No caso de eventos presenciais, use crachás com o seu nome, instituição ou se é pesquisadore independente. Em eventos on-line, é de bom tom informar o seu nome, seu arroba e meios de comunicação na legenda e na apresentação. Quando começar a apresentar, descreva a si mesmo a partir do nome, então descreva, de forma objetiva, a sua aparência (cor da pele, textura e tamanho do cabelo, bigode, pintas, sinais e cicatrizes). Descrever a roupa e o cenário focando as cores, estampas e elementos principais.
Exemplo de autodescrição

Para descrever a si mesma a partir da visão, primeiro, observe o enquadramento de sua imagem que aparece para o público. No caso da imagem acima, a textura amadeirada do cenário no lado esquerdo não importa para a descrição, assim como o que tem na mesa. Mas tirando isso, o que é importante destacar?
A pessoa da foto acima poderia começar compartilhando o seu nome e o que faz (eu diria que sou Anne Quiangala, doutora em literatura e idealizadora do Pretaenerd, mas dependendo do contexto, poderia dizer uma coisa ou outra). Em seguida, ela pode dizer: “sou uma mulher negra/parda com cabelo crespo preto e sem definição, preso acima da cabeça. Meu rosto é alongado e as maças do meu rosto são protuberantes. Uso óculos de grau com uma armação arredondada e metálica. Estou usando sombra preta nas pálpebras e um batom roxo nos lábios e tenho uma expressão sorridente. Estou vestindo uma blusa branca e um paletó preto por cima. No fundo, a parede é coberta por uma madeira lisa, marfim, e, atrás de mim, há uma janela branca com quatro espaços de vidro cobertos por uma imagem com textura de pedras coloridas”.
Quem sabe, você acrescentaria que ela está usando um colar prateado com um pinjente pequeno de cruz, ou detalharia outros elementos e, está tudo bem, porque não há fórmula! O ideal é sempre praticar, tendo em mente a perpepção a partir de uma experiência espacial, tátil (textura, volume, distância) e também permeada por cores. Não se perca do objetivo central da autodescrição, que é oferecer um modo alternativo de perceber você e o espaço. Descrever minúcias do look do dia ou do cenário, gasta tempo demais (lembre-se que todo mundo deve se descrever!).
Esse manual de boas práticas não é um material especializado, portanto, se atente a conhecer melhor a realidade de pessoas com deficiência visual. Acompanhe pensadoras, teóricas e influencers para ter uma melhor compreensão de como não excluir as pessoas, mesmo tendo uma ótima intenção. Digo isso porque aprendi com um vídeo antigo da Nathalia Santos (@nathaliasantos) que descrever cor é importante para pessoas com deficiência visual, cegas, com baixa visão acessarem a informação. Existem diferentes formas de ver e de perceber o mundo, por meio de outros sentidos além da visão, e é por isso que as cores devem ser mencionadas na hora de descrever a si mesma e o cenário.
O Público também faz parte da festa dissidente!
Desenhamos o Simpósio Pretaenerd Academy como uma celebração do diálogo horizontal, compartilhamento generoso de hiperfocos, pesquisas tanto idependentes, como viabilizadas em contextos institucionais. Nesse contexto, não existe a divisão entre quem está no “palco” ou na “platéia”, não há espaço para comentários grosseiros e nem para a desqualificação, porque entendemos a diferença, a “bela estranheza” (Walker, 2021), a personalidade de cada pessoa, tudo isso de forma positiva, como características próprias.
Por essa razão, é esperado de quem assiste a apresentação dos trabalhos em mesas, GTs, defesas de tese, de poster ou num vídeo na internet, uma postura respeitosa e amigável. O público é parte da festa, porque o seu engajamento, demonstração de interesse, comentários e perguntas reforça que a palestra faz sentido como diálogo. Lembre-se que a apresentadora é gente, assim como você!
4. Nos eventos presenciais, apoie ativamente, quem apresenta uma palestra, seminário ou “faz live”: prestigie, preste a atenção, faça anotações, pergunte e tenha uma postura amigável. Em eventos online, se puder manter a câmera ligada, faça essa escolha para que o ambiente virtual pareça mais povoado e colaborativo, para quem apresenta.
4.1 Às vezes, ligar a câmera pode ser desafiador, porque tememos o julgamento tributário de violências que estruturam a sociedade brasileira (racismo, classismo, sexismo e capacitismo), ou nos sentimos inseguros com a nossa aparência. Entretanto, num ambiente que valoriza a diversidade, o respeito e, onde todo mundo pode pertencer, abrir a câmera pode significar apoio ao outro e contribuição para o fortalecimento da autoestima de outras pessoas que se sentem inseguras com a própria aparência.
4.2. Como audiência, considere o esforço e coragem de quem está propondo um determinado conteúdo ou submeteu um trabalho à avaliação. Todo mundo sabe o quanto é difícil se por à prova e sofrer críticas, afinal, todo mundo gosta de estar certa. Por tudo isso, seja empático com quem está apresentando!
4.3. Existem formas de se portar como público que são particularmente amigáveis e empáticas. Uma delas é fazer “pergunta amiga”. Quem faz uma apresentação quer conversar sobre o trabalho, seja respondendo perguntas ou falando mais sobre um determinado tópico. Infelizmente, é comum não ter pergunta nem comentário, por diversas razões. Nesse cenário, o ideal é a coordenação da mesa/evento propor perguntas e se atentar para o equilíbrio de perguntas para cada comunicador. Assim, uma “pergunta amiga”é como levantar a bola para a comunicadora fazer o gol. Noutras palavras: faça uma pergunta que ajude a outra pessoa brilhar, mesmo que você saiba a resposta! Geralmente, nem todo mundo conhece o tema e, por vezes, a pergunta amiga ajuda a expandir a discussão e incluir pessoas mais tímidas.
4.4. Se estiver num evento presencial, levante a mão ou escreva a dúvida no papel e dirija à pessoa responsável pela coordenação da mesa. Se a curadoria não ler a sua pergunta, leve na esportiva, pois não é sobre você. Há fatores como tempo, temática e pertinência que estão em jogo na hora de selecionar as perguntas. Já em redes sociais, se atente para o seu jeito de escrever: reproduza um tom preciso a partir da pontuação e pensando como a outra pessoa talvez leia. Em apresentações online, lembre-se que a apresentadora está sob pressão e pode ser difícil compreender a sua pergunta ou comentário. Para ajudar, digite no chat a palavra “pergunta” ou “comentário” antes da frase direcionada ao debatedor.
4.5. Tenha em mente que as perguntas servem para ampliar a conversa, jamais para atacar ou “verificar o conhecimento”. Discordar faz parte do diálogo, e mesmo assim, não precisa ser uma agressão. Discorde sempre de modo objetivo, respeitoso, com atenção ao tom, ao vocabulário e ao modo como se dirige à pessoa. Evite “dar fechos” ou “tirar de tempo”, proponha sugestões, compartilhe outra perspectiva e fontes de consulta, pois todo mundo está num processo de aprendizado.
4.6. Explicite a sua disposição para a conversar, se atentando ao modo de expressar a sua sincera vontade de aprender e de “trocar ideia”. Nem sempre seremos compreendides, ou interpretades a partir da nossa boa fé nos espaços convencionais, mas na comunidade, nossa proposta é sempre partir da confiaça e do bom senso.
4.7. Considere escrever o texto em caixa baixa (sem ativar o caps lock) nos comentários, para garantir que a apresentadora tenha facilidade em captar a sua intenção de não gritar. Evite usar termos de calão (palavrões), expressões preconceituosas (mesmo pra exemplificar ou contradizer), temas sensíveis e palavras com sentidos muito amplos. Antes de enviar, sempre leia o que você escreveu e se pergunte se existe alguma ambiguidade, alguma interpretação ofensiva e se o texto é dificil de compreender. Em suma, escreva algo que gostaria de ler, se estivesse apresentado.
4.8. Evite conversa paralela, seja sussurando, trocando papeis ou mensagens, porque essa atitude significa desrespeito pelo tempo de apresentação. Além do mais, essas atitudes desconcentram e afetam a confiança da pessoa dissidente, que é sistematicamente ignorada. É provável que alguem investido de poder silencie uma plateia barulhenta com facilidade, mas é raro acontecer dessa forma quando quem fala é são as pessoas dissidentes. Nesse sentido, um ato aparentemente inofensivo como o sussuro acaba se convertendo em reprodução de violência. Se você for alguém investido de poder, se atente para usar esse poder para garantir que a voz dissidente seja ouvida.
4.9. Precisa de ajuda ou de acomodação? Peça, verbalize objetivamente qual a sua dificuldade e como as pessoas podem ajudar (Boyd, 2022). Muitas vezes, nós temos vergonha de pedir ajuda, mas é importante aceitar que não se faz nada só, então perguntar e pedir ajuda faz parte do processo de crescimento de qualquer pessoa, com ou sem deficiência. Caso alguém se negue a ajudar, compreenda que se trata de uma pessoa desalinhada dos ideais desta comunidade, mas sempre há pessoas gentis por aqui!
Uma boa prática para todo mundo: “Não seja um spam humano”
Em Mostre seu trabalho (2017), o escritor Austin Kleon ensina estratégias para fazer o seu trabalho ser alcançado por outras pessoas. Desde o início, o autor explica por que a autopromoção é uma forma ineficiente de promover o seu trabalho: a generosidade de partilhar seu conhecimento, dividir seus segredos e referências funciona muito melhor que tentar provar a sua genialidade e talento ignorando os outros. Kleon afirma que: “como todo autor sabe, se você quer ser escritor, tem que ser leitor primeiro” (2017, p. 115) e isso, aplicado ao nosso contexto, significa que precisamos fazer parte de uma plateia e contribuir com outras pessoas em vez de focar na autoimportância de quem somos e do que fazemos.
Note que pessoas dissidentes podem nadar o quanto for, mas se não seguirem as regras do mundo capitalista (rindo de si mesmo, agredindo os semelhantes, apagando o trabalho dos outros ou fazendo pouco caso para ser “a única”) dificilmente serão reconhecidas e recompensadas. Nesse ponto, é uma escolha: você quer fãs, colegas, ou se ver cercada de gente que não gosta nem um pouco de você? Algumas atitudes egoístas contribuem para esses resultados hostis.
5. Celebre e prestigie o trabalho de outras pessoas. Se interesse verdadeiramente pela pesquisa, textos e demais produções de outras pessoas e colabore no que puder. Caso haja abertura, converse sobre os pontos fortes, fragilidades e “o que fica”, como aprendemos na oficina de escrita no espaço Verbal Criativa. Essa rede de colaboração recíproca é o alicerce de uma cultura acadêmica, artística e de influência produtiva e anticapitalista.
5.1. Sempre dê crédito pelas ideias ou referências, afinal você também quer ser creditada, certo? Se for difícil lembrar, crie o hábito de anotar ou, simplesmente, não use a ideia. Como diz a minha amiga zumbióloga Stefany Stettler: “entenda que texto de IA é plágio”. Encontre um sistema que funcione para você ou para o formato que está usando; pode ser mencionar o arroba, mas também recomendamos as normas técnicas definidas pela Associação brasileira de Normas Técnicas (ABNT).
5.2. Ser um spam humano é o oposto de solidariedade, colaboração, horizontalidade. Eu sei que as redes sociais não entregam o conteúdo e que você gostaria muito de ter mais gente apreciando o seu trabalho – a maioria das pessoas quer o mesmo! Mas enviar seu conteúdo em massa, para todas as pessoas que você conhece, sem nenhuma introdução, é a pior maneira de iniciar uma conversa sobre o seu trabalho. Por que alguém deve prestar a atenção ou prestigiar o seu trabalho, se você não teve a mínima consideração de contextualizar a pessoa ou mesmo de se conectar com ela?
5.3. Antes de encher o inbox, direct, caixa de e-mails de alguém considere ser público antes de qualquer contato direto com alguém. Comente, compartilhe e apoie verdadeiramente o trabalho dessa pessoa e garanto que vai gerar mais interesse do que sendo um spam humano.
5.4. Antes de divulgar o seu trabalho de forma direta e perseverante, considere se apresentar e explicar a razão de estar enviando o conteúdo. Jamais mande cards de autopromoção sem contexto para ninguém (ninguém!). Em vez disso, divulgue o seu e-mail, redes sociais, Academia.Edu e etc quando apresentar trabalhos e em situações sociais que caibam, porque as pessoas interessadas vão acessar se não forem precionadas. Não use espaços de painéis e seminários para empurrar para o público as suas produções, cursos e estratégias para falar além do tempo estipulado. É preciso aprender a se conectar com as pessoas e prestar a atenção ao que elas produzem.
Conclusão: boas práticas dissidentes privilegiam a acessibilidade e o acolhimento
Etiqueta é um conjunto de regras que, raramente, considera indivíduos dissidentes, seja devido à tentativa de formatar a aparência e o comportamento, seja pelo desejo de controlar corpos e mentes a partir de parâmetros hegemônicos.
Na universidade e em qualquer outro ambiente acadêmico, é fácil se destacar da multidão se você tem aparência ou comportamento diferente do esperado (a norma) e isso geralmente é usado pra justificar a violência contra as minorias políticas.
Talvez você já esteja imaginando que diversos elementos éticos e estéticos atípicos e socialmente discriminados encontram nos ambientes de ensino uma possibilidade de expressão, mas se observar bem, é provável que esses desvios façam parte de um discurso mais amplo sobre genialidade (isso é bem discutido na série THe Chair, da Netflix). E esse gênio, não-raro, é um homem-cisgênero branco, oriundo de camadas sociais abastadas, porque esse “tipo ideal” possui liberdade poética para ser o que quiser e ser recompensado por sua “excentricidade”.
Porém, para além dessa tão conhecida lógica do mundo convencional há formas de existir e de resistir. Grupos de estudos e contextos alternativos de ensino são alguns deles, mas só o são se cada membro se responsabilizar em contribuir na construção do ambiente seguro, respeitoso e acessível. Esse tipo de projeto não se faz sozinho, e é por isso que discutimos algumas das “leis não escritas”, e elaboramos o nosso proprio manual de boas práticas, do ponto de vista dissidente! Esperamos que esse manual seja útil para você e que a nossa conversa continue!
Refefências
Barreto, Raquel. “QUILOMBO, PALAVRA QUE SIGNIFICA UNIÃO.” Suplemento De Pernambuco, 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/41946456/QUILOMBO_PALAVRA_QUE_SIGNIFICA_UNI%C3%83O. Acesso em 21 ago. 2025.
Boyd, Michelle R.. Becoming the Writer You Already Are. Estados Unidos, SAGE Publications, 2022.
Collins, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento. Brasil: Boitempo, 2019.
Kleon, Austin. Mostre seu trabalho! 10 maneiras de compartilhar sua criatividade e ser descoberto. Brasil, Editora Rocco, 2017.
Lemos, Christiane (2018). Dicas de Netiqueta. Disponível em: https://educapes.capes.gov.br/bitstream/capes/206361/2/Dicas%20de%20Netiqueta-Christiane.pdf. Acesso em 20 ago. 2025.
Mazak, Cathy. Making Time to Write: How to Resist the Patriarchy and Take Control of Your Academic Career Through Writing. Reino Unido, Morgan James Publishing, 2022.
Ratts, Alex, et al. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. Brasil: Imprensa Oficial, 2007.
Walker, Nick. Neuroqueer Heresies: Notes on the Neurodiversity Paradigm, Autistic Empowerment, and Postnormal Possibilities. Estados Unidos, Autonomous Press, 2021.
Walker, Nick. Teoria Neuroqueer: uma introdução. Traduzido por Tainá Elis. Disponível em: https://pretaenerd.com.br/2025/07/neuroqueer-uma-introducao/. Acesso 21 ago. 2025.