“VIVENDO OS TEXTOS FORA”: PRETA, FEMINISTA E BLOGGER
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Aph Ko, criadora e protagonista da webserie Black Feminist Blogger |
“As especifidades são minhas, a condição é comum”
(Abena P. A. Busia)
PROBLEMA DE IDENTIDADE
O título do texto é uma referência ao ensaio Living the texts out (1993) da poeta-negra-lésbica-estadunidense Cheryl Clarke. A referencia diz respeito à relação que há entre nossa vida como leitoras em contato com teorias acadêmicas e escritoras que prezam pelo diálogo compreensível “vida afora”. Sabemos que a escrita demanda o complexo processo de leitura de texto, de nós, do mundo que nos cerca. Esse lugar virtual que você está lendo, que denominei Preta, Nerd & Burning Hell, mostra um pouco desse processo contínuo. Nasci “fisicamente” preta e venho me tornando politicamente Preta (nem de forma progressiva tampouco buscando um fim). O que isso quer dizer? Nasci numa família com muitos homens e, socializando com eles, descobri que a diferença existia pra ser contestada. O que isso quer dizer? Era a única garota da classe que, além de Preta, acordava muito cedo pra jogar SNES antes da aula. Ou que não dormia pra assistir Buffy: a caça vampiros. Ou que acompanhava o Disk MTV. O que isso significa?
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“Black Feminist Blogger” (Temporada 1- Season Finale: “Scurvy and Self-care“) |
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Patricia França em Orfeu (1999) Taís Araújo em Xica da Silva (1997) Bianca Lawson em Buffy a caça vampiros (1998) |
Eu estou constantemente definindo meus eus, pois eu sou, como todxs nós somos, feitas de tantas partes diferentes. Mas quando esses eus entram em guerra dentro de mim, eu sou imobilizada, e quando eles se movem em harmonia, ou concessão, eu sou enriquecida, tornada forte. (LORDE, 2009 via trad. tate ann)
- a nossa voz, quando escapa dos moldes, tanto redesenha a fala, quanto desautoriza a maquinaria pre-estabelecida; É, portanto, um lugar de contestação da violência/hierarquia.
- harmonia reside na compreensão da identidade como (a) consciência do comprometimento político e da (b) consciência de que possíveis privilégios não salvarão “o todo” da violência;
- o que teóricos geralmente concebem como não-lugar, a gente vive como a desconformidade de não pertencer aos quadros que os locais predefinidos demandam. Somos sim um lugar.
O PARTICULAR NAS CONDIÇÕES COMUNS
Black Feminist Blogger (BFB) é uma webserie
independente criada por Aph Ko e Wes Garrett e acessível no canal do YouTube Aph Ko Productions. “Diferente das séries mainstream que são protagonizadas por mulheres Negras advogadas, ricas, maquiadas vestindo grife ou guerreiras hiper-fortes”,
BFB nos apresenta uma protagonista que é… como a gente?!
A condição comum de
Latoya é ser uma garota Negra, autônoma, inteligente, uma leitora assídua e com afiada consciência política, escuta rock, toca instrumentos e se vira num mundo muito
racista, que a empurra pra fora todo o tempo – verdadeiro burning hell.
Negra real, ela precisa sobreviver
num mundo mega hostil: negociar com sua
chefa branca, fazer trabalhos que não são do seu agrado para poder pagar as
próprias contas e lidar com a cegueira (alheia) típica de quem tem privilégio.
Através
do cenário, identificamos aspectos da identidade dela que parece não se
encaixar, ao menos com o esperado, tipo: quadro dos Beatles e da Angela Davis
na mesma parede. Ela é superconsciente e crítica, mas tem que vender seus
textos muito barato, perdendo os direitos autorais, sendo demitida, apagada e enganada
sempre que a chefa acha possível. Óbvio que estamos junto com ela quando reage veementemente às opressões. Aliás, embora seja uma série de humor, aquele vácuo, a pausa na respiração para engolir um mal-estar, não tem lugar em BFB. Latoya sabe muito bem das coisas e responde cada “não”; por outro lado, a precariedade é ter o que perder. Essa condição de ter contas a pagar reconfigura algumas falas, jamais a consciência. A chefa não deixa esquecer que é necessário escrever de forma “afável” porque “quanto mais cliques, mais dinheiro e melhor é a sua remuneração”. Essa relação acessos/dinheiro/superficialidade que Marie – a chefa – faz nos lembra das condições reais de quem ganha dinheiro aparecendo na internet.
Em Black Feminist Blogger temos uma escritora Negra feminista dos nossos tempos (blogger) que, embora tenha um teto todo dela, ele é mantido pelo seu trabalho (escrita) que obriga a ter contato com a violência epistemológica, simbólica (racializada) da chefa feminista-branca que nega o lugar de Latoya o tempo todo. Existe uma violência aí que é ao bloco, não à feminista, à Negra, à profissional, à jovem. Existe um bloco de impossibilidade de ser (branca, homem, rica) que mostram o quanto não adianta abrir mão de algum aspecto, porque o corpo é um só.
e a pluralidade dos feminismos como tópicos de discussão centrais de todos os
episódios. Latoya é Preta, Nerd, Feminista, blogueira, ativista, estadunidense,
roqueira, blackpower, leitora e pessoa comum que luta pra sobreviver. São identidades conflitantes? Híbridas? Ambivalentes? Deslizantes?
CAMINHOS POSSÍVEIS
forasteiros” e “flutuações”, me causou estranhamento desde o início porque minhas
experiências formadoras resistiam à compreensão do conceito de hibrido como adaptação cultural (Canclini). Independente dos conflitos raciais que haja
na família de Latoya, as pessoas enxergam um ponto específico que é: Negra, “apesar” da “melanina não tão acentuada”. E, sendo Negra, por que não encaixar no “padrão de beleza negro”? Na vida a gente pode
escolher alguns lugares de privilégio, mas quando a corda arrebenta, o corpo
cai inteiro. Já foi dito que “não existe hierarquia de opressão”. Quanto a
Latoya, uma protagonista que não representa o glamour, muito ao
contrário, vive infiltrada:
[…] em espaços mainstream, espaços que, muitas vezes demandam uma negociação desconfortável entre a sua identidade como feminista e sua identidade como blogger no espaço (virtual) mercadológico (GOLDSTEIN via THE DAILY BEAST) – tradução nossa (1).
medida, uma escolha performativa aqui-agora, mas que não apaga outros aspectos.
No caso de Latoya, não estar tocando guitarra ou bateria, não significa que
isso deixa de fazer parte do todo. Também não pode ser lida como um modo comum de consumir certo produto cultural. Um tema recorrente da série é a apropriação cultural que brancos são autorizados (por si mesmos) versus a condição Negra de Latoya que tem consciência da anterioridade, e total ciência de que a adaptação homogeneizante é produto da máquina:
Um exemplo de apropriação cultural e mercantilização é o rock-and-roll, um gênero musical dominado por pessoas brancas, mas originário do blues e do jazz criado por artistas negros e negras. Músicos brancos cooptaram esses estilos musicais originalmente negros, e os transformaram em um recurso de captação de fama e riqueza. Como é frequentemente o caso com a apropriação cultural, brancos tomaram algo considerado “étnico” e o popularizaram. Essa é a característica que define a apropriação cultural – o uso de poder e privilégio branco para “legitimar” as práticas e tradições culturais dos povos de cor (Altheria Gaston via trad. Lucas Pamplona).
considerada incompleta pelo senso comum (parda), a interdisciplinaridade e a androgenia (que
socialmente é interpretada como 50%/50%) são posições políticas que,
usualmente, são alijadas de seu caráter impassível, categórico, de
“Não”. Seu caráter (analítico) de SER ambivalente, oposto ao
“SÓ” positivo ou “SÓ” negativo, é um lugar em si, que não
sofre violência por categoria avulsas; sofre violência pela complexidade simultânea. Dificilmente as discussões englobam esse pressuposto.
NOTA
REFERENCIAS
TEXTOS CONSULTADOS
BHABHA, Homi K.Interrogando a identidade: – Frantz Fanon e a prerrogativa pós-colonial in O local da cultura.Belo Horizonte: UFMG, 1998
McClain,Jen .I’m Just an Introvert Girl, Living in a Conformity World. <blackgirlnerds.com/im-just-an-introvert-girl-living-in-a-conformity-world/>. Acesso em 9 fev. 16.