ESTRELAS ALÉM DO TEMPO quebra uma (grande) mentira branca
mentira repetida mil vezes se torna uma verdade. Essa é uma lição conhecida particularmente por minorias políticas porque vivenciamos o tempo inteiro a incursão de discursos que buscam nos desestruturar, paralisar e ferir. Devido à crescente divulgação das conquistas,
invenções e descobertas empreendidas por mulheres, negros e pessoas
não-binárias fica evidente que nós sempre estivemos em todos os lugares, mesmo que não muitas, mesmo que desacreditadas. Esse apagamento é uma estratégia eficaz de nos distanciar da ciência, uma vez que as imagens de referência são o primeiro estalo de identificação sobre o que desejamos ser.
Todas as pessoas precisam se ver para compreenderem que é possível e daí vem a autoestima e assombrosa sensação de legitimidade dum Paul Stafford (Estrelas além do tempo) ou Sheldon (The Big Bang Theory). Curioso que, ao mesmo tempo que são investidos de todo o poder, um fio de insegurança se soma ao desejo de aniquilação da diferença quase nunca reconhecido. Não reconhecer é uma forma de omitir os fatos, o que tem sido mais difícil com o passar do tempo. Cada vez mais, abre-se o espaço de resposta e de reforço do que não pode ser esquecido. Estrelas além do tempo é exatamente essa lembrança, a quebra duma mentira e a certeza de que podemos alcançar o que formos capazes de desejar. Neste sentido, é muito importante que as pessoas brancas reconheçam seu lugar na história de opressão e usem o privilégio para romper a ordem social – consciência expressada pelo diretor e Estrelas além do tempo, Ted Melfi. Ao ser interpelado sobre o porquê do apagamento das heroínas de Estrelas além do tempo, ele afirma:
“Tem a ver com racismo e sexismo. Nós escondemos as conquistas das mulheres. Temos filmes sobre a NASA e elas só aparecem como secretárias e esposas”
(Ted Melfi, diretor de Estrelas além do tempo via Fantástico)
todas as letras: podem ser mantidas em segredo (como o racismo) ou no
esquecimento, para beneficio de grupos sociais poderosos. Contra essas formas
de mentira e de ocultação, estreia nos cinemas brasileiros Estrelas além do tempo [Hidden Figures, Theodore Melfi, 20th
Century Fox, 2016 – 2h7min], baseado na biografia
de mesmo nome escrita por Margot Lee Shetterly (escritora negra, filha de cientistas, e que conviveu nesta zona da Nasa até então desconhecida pela maioria de nós!).
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Numa imagem Estrelas além do tempo [Hidden Figures] desmonta uma grande mentira que começou (talvez) quando disseram que egípcios não construíram pirâmides e sim os X-Men ou extraterrestres. |
Estrelas Além do Tempo
(Guerra Fria) houve uma equipe de cientistas da NASA totalmente composta por
mulheres negras conhecidas como computadores humanos,
dada sua habilidade exata de calcular. Dentre elas, destacam-se três amigas: a matemática Katherine Johnson (Taraji P. Henson), a programadora Dorothy Vaughan (Octavia Spencer) e a engenheira Mary Jackson (Janelle Monáe). Àquela época, 1961, os Estados Unidos não apenas viam as consequências sexistas da geração baby boom pós Segunda Guerra Mundial (1940-45), quanto perpetravam a segregação racial de forma ostensiva e sem constrangimento. Além disso, cultivava-se um pânico coletivo em relação ao comunismo e, em especial, à Rússia que demonstrava superioridade tecnológica. Foi exatamente o medo da Rússia alcançar o espaço (e quiçá a Lua) que demandou a missão de lançar o primeiro estadunidense ao espaço, e não apenas isso: fazê-lo orbitar a Terra e retornar em segurança.
eletrônicos eram rudimentares e o mercado carecia de profissionais qualificados para a programação das máquinas, neste sentido, foi crucial a expertise de Dorothy Vaughan que liderou as operações nesta área junto às demais profissionais treinadas por ela. Apesar disso, os computadores eletrônicos estavam em fase experimental e não possuíam a precisão para os cálculos necessários. Sendo assim, os cálculos de Katherine Johnson se mostraram mais precisos (com mais casas decimais) que a gigantesca IBM e possibilitaram que a cientista se destacasse. Já a jornada de Mary Jackson inicia com o convite para trabalhar no túnel de vento supersônico, que conferiu a experiência necessária para tornar-se engenheira, exceto pelo fato de ser Negra num estado segregacionista.
As três superam os problemas sem que pra isso sejam vetores do discurso meritocrático e mostram o quanto o pessoal é político, já que a luta pela sobrevivência as posiciona em locais praticamente impossíveis em tempos de segregação racial. Não tem como narrar uma história nesse período sem levar em conta as violências, mas o filme consegue equilibrar os fatos com leveza e humor que expõem o sistema, sem vilão/vítima em particular. O filme informa sobre o real problema ser o sistema e o modo como as pessoas se apropriam dele, lançando o racismo prum nível político, não moral. Em suma: Estrelas além do tempo é uma jornada rumo ao heroísmo exatamente como eu desejava ver.
Expectativas? O melhor do melhor!
Apesar desta constatação desconfortável, é evidente que ela proporciona uma reflexão profunda sobre quem é o sujeito do conhecimento, o que é o saber científico, quais os interesses políticos/econômicos que comandam a divulgação científica, como o conceito de pátria expulsa sujeitos contribuintes e muitas outras. Como Negra inserida no contexto da divulgação científica sob o viés de gênero esses questionamentos fazem parte do meu cotidiano e não me surpreende que existam cientistas negras como Katemari Rosa, Viviane dos Santos Barbosa e Marie Maynard Daly e sim a forma de terceiros narrarem suas trajetórias.
Um aspecto doloroso da consciência negra é o legado de violência, usurpação e extorsão que resultam numa hierarquia social que parece intransponível. Um problema recorrente nas narrativas sobre desigualdade racial é a presença de brancos salvadores, abolicionistas, princesas Isabel que se mostram mais conscientes da exploração que os próprios explorados. Ora, se por um lado a hierarquia real faz com que brancos possam (e devam) usar o privilégios para abrirem espaço para negros, por outro, é necessário enfatizar o nosso lugar de agentes – afinal, “o racismo é uma problemática branca“. No trailer de Estrelas além do tempo uma das passagens parece ambígua, mas no filme é riquíssima. Ela mostra o diretor do programa espacial, Al Harrison (Kevin Costner), confrontado pela realidade da segregação como vivida por negros: Katherine Johson caminha 1,6 KM para ir ao banheiro “para negras” no precário edifício da zona oeste. Investido de poder, Harrison arranca a placa e institui o uso comum de qualquer dependência. Embora o trailer não evidencie o fato, no filme, o personagem é descrito não como um salvador, mas como “uma pessoa decente” capaz de reconhecer as potencialidades das pessoas.
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Al Harrison (Kevin Costner) destrói a placa que identifica o banheiro precário para “pessoas de cor”. |
É claro que a experiência de Katherine Johson é muito dolorosa, como a maioria das situações vivenciadas por Dorothy Vaughan e Mary Jackson, mas a forma como elas são apresentadas, não são gatilhos e nunca mostram o horror pelo horror. O racismo é denunciado desde a institucionalização (as universidades, bebedouros e assentos de ônibus eram separadas por raça sendo que os negros ficavam o mais precário) até as falas alegadamente racistas e, acima de tudo, a micro-violência (olhares de reprovação, gaslighting, subestimação, desprezo). A maioria das performances de racismo são construídas numa linha de humor negro (isto é, direcionada aos negros), que nos faz rir de boçalidades e inseguranças que racistas performam dada a sua ignorância. Há respostas muito poderosas junto às situações como a da implacável engenheira:
“Toda vez que a estamos chegando, eles movem a linha de chegada”. Mary Jackson em Estrelas além do tempo
Ao mesmo tempo que o sistema racialista é exposto, rimos muito do cotidiano com o qual nos identificamos. Katherine Johnson, por exemplo, é desajeitada, nem sempre sabe o que dizer e pode ser classificada como Preta Nerd no Burning Hell.
A história de Katherine Johnson perpassa vários âmbitos da vida, inclusive o religioso. Seu envolvimento com o coronel James Johnson (Mahershala Ali) é explorado de forma sensível e humana, evidenciando a relação entre afeto, acordo, respeito e admiração. O mesmo acontece com Mary Jackson, cujo marido reconheceu a internalização de seu próprio sexismo e se propôs a mudar a atitude e apoiar a carreira da companheira. Uma mensagem sutil de reconciliamento entre os afetos e os saberes científicos é transmitida nesses momentos, afora o fato de que ninguém está pronta para a complexidade da vida. Somado a isso, a relação entre Katherine Johnson, sua mãe e suas filhas evidencia a diferença que aprender a amar faz em nossas vidas. O amor nos faz mais fortes, não como um clichê ultrarromântico, mas como a chave para lutar contra a desumanização a qual somos submetidas diariamente. A superação das três cientistas não é uma ode à meritocracia, mas à capacidade de se reconectar consigo mesma, de conhecer nossos talentos e protagonizar nossas vidas.
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Uma das três filhas de Katherine Johnson a presenteia com a ilustração da mãe num foguete. |
A jornada em primeiro plano é a de Katherine Johnson, mas isso não diminui a história das demais. Mary Jackson, por exemplo, decide se tornar engenheira e viver o impossível: ser a primeira mulher Negra a cursar uma pós-graduação na Universidade da Virgínia. O momento em que ela é desafiada pelo Sr. Z (um judeu que teve a família assassinada na Polônia) é particularmente emocionante porque mostra o real sentido de empatia. Sim, precisamos lutar mais, sermos três vezes melhores, mas não podemos desistir jamais. Navegar é preciso.
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Mary Jackson (Janelle Monáe) vivendo o “impossível” junto ao judeu Sr. Z. |
Dorothy Vaughan é uma personagem absolutamente adorável, e materializa o que Viola Davis disse sobre atrizes Negras: para serem premiadas precisam ter a chance de interpretar papéis importantes. Vaughan é a personagem ideal sobre a pele de Octavia Spencer, que encarna de forma perfeita uma mulher ativista, como o tempo que viveu demandava. Não do tipo que vai à passeatas, mas que pensa de forma coletiva, que ensina os filhos a manterem a cabeça erguida e as colegas a programar. Sua curiosidade é descrita de forma esplêndida, como na passagem em que seu carro quebrou na ida ao trabalho com as amigas. Sem problemas ela decide consertar o veículo, e antecipa sua engenhosidade no campo da programação. No filme, senti falta particularmente de uma solução visual para a sua importância na corrida espacial. Uma solução possível seria a inserção duma sequência que focasse nela programando junto à equipe de mulheres Negras que treinou e, em off, a explicação narrada por Al Harrison (e que focou em sua figura).
A interpretação encantadora de Janelle Monáe rasga todas as mentiras e convenções conferindo grande charme à Mary Jackson. Ela é uma mulher espontânea, animada e vaidosa descrita não como pedante, mas como uma pessoa que tem consciência de sua potencialidade e que reconhece seu valor. A força de Mary Jackson está em sua impactante presença de derrubar qualquer recomendação de falsa-modéstia.
Além da atuação individual, a interação em cena das atrizes Taraji P. Henson, Octavia Spencer e Janelle Monáe é absolutamente deliciosa, flui de forma encantadora e representa a força absoluta de não ser a exceção à raça. Juntas, as três personagens são mais fortes porque se apoiam e crescem, sempre juntas mostrando que vencer sozinha não é vitória real.
O Racismo como tema
O longa é rico de significados principalmente porque constrói uma narrativa sobre pessoas negras direcionada a esse público. O sofrimento diário não é diminuído nem capitalizado por meio de cenas tortuosas. As cientistas vivem num mundo real estruturado pelo racismo e sexismo, que perpassam a narrativa como discussões, como um problema branco direcionado aos negros. Assim como diferentes personagens brancos performam branquitude mais ou menos conscientes (negando, reconhecendo, envergonhados, culpados), em vários momentos, também usam o que podem para possibilitar a reparação.
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Oi? |
A perversa personagem Mary Jane Vivian Mitchell, interpretada por Kirsten Dunst, é uma mulher ambígua que expressa as armadilhas do feminismo de primeira onda. Ela se preocupa em parecer competente (porque não tem os próprios direitos assegurados), e de exercer poder sobre a gentil, competente e adorável Dorothy Vaughan. Seu senso de superioridade é tributário única e exclusivamente do privilégio racial, já que não apresenta grandes perícias, e esse é o grande comentário retórico sobre a entrada das mulheres brancas no mercado de trabalho na década de 1960. A sessão feminina representada por Mitchell não é um ambiente solidário para Negras, mesmo se comparado com a cúpula dos gênios liderada por Al Harrison. Por outro lado, no intuito de não vilanizar a Mary Jane Ms. Mitchell nem investir na ideia de que todas as mulheres rivalizam, há a secretária Ruth que, apesar de pouco tempo em tela, tem um comportamento de não-aceitação mais discreto (que se revela e transmuta para uma quase aceitação).
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O astronauta John Glenn (esquerda) foi o rosto da missão, enquanto Katherine Johnson (direta) foi o cérebro. |
Como no mundo real, o filme apresenta uma multiplicidade de duplos. Assim como o “nerd ideal” Paul Stafford (Jim Parsons) é superestimado, ele expressa o que há de pior num mundo capitalista, racista, sexista e capacitista simplesmente por ser quem/como ele é, ao passo que o astronauta John Glenn (Glen Powell) se posiciona de forma definitivamente antirracista. É um dos personagens mais simplificados do filme, mas sua presença é marcante por representar ideais radicalmente democráticos àquela época bem como por investir sua confiança no cálculo de Katherine Johnson. O filme não cai no erro de alçá-lo a um pedestal também, ele representa o “racismo diário” (everyday racism) como vivenciado hoje, o da tolerância. Eis uma das discussões mais sutis e que mais me desafiaram em Estrelas Além do Tempo.
Escrevendo uma história de vitórias
Crítica: Estrelas Além do Tempo é um filme impactante que faz jus às mulheres geniais
CIÊNCIA EM FAVOR DE QUEM?As cientistas negras que possibilitaram à Nasa colocar um homem no espaço
ESTRELAS ALÉM DO TEMPO LUCRA MAIS QUE LA LA LAND NOS ESTADOS UNIDOS
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Perfeito!