Aphro-ism: Por que precisamos dum veganismo negro?
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Arte do projeto Black Vegans Rock criada por EastRand Studios |
- Aphro-ism: essays on pop culture, feminism and Black veganism from two sisters
- Autoras: Aph e Syl Ko
- Lantern Books (selo da Green Press Initiative.)
- 202 páginas ou E-book via Amazon.
- Abril de 2017
- Inglês
Alguns dos ensaios presentes no livro foram publicados entre 2015 e 2016, no site Aphro-ism, bem como um vídeo intitulado Revolução do pensamento [Thinking Revolution] em que Aph Ko descreve “como” e “por que” a sua abordagem crítica é fundamentada na fissura entre os conceitos de “humano” e de “animal”. Segundo Aph Ko, a constante comparação entre pessoas racializadas – em especial, negros escravizados – e a exploração dos “animais” pela indústria e ciência é lugar-comum na retórica vegana (branca), e isso indica sua total falta de comprometimento com o antirracismo, já que naturaliza a ideia de que pessoas racializadas “são como animais”.
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Aph Ko em Revolução do Pensamento |
Se você estiver familiarizada com o conceito de corpo abjeto, desenvolvido por Judith Butler em seu artigo Corpos que pesam, entenderá melhor o que Aph e Syl propõem como “animal”: um campo de experiências e identidades desumanizadas que são caracterizadas como “dispensáveis” ou “menos valorosas” e “menos conscientes” que as humanas. Segundo as irmãs Ko, a abjeção em relação ao homo sapiens racializado é fundamentada pela lógica de que o conceito de humano, em si, é eurocêntrico, masculino, heterossexual, ao passo que os demais homo sapiens, que desviam desta norma, são conceitualmente animalizados. Essa perspectiva torna naturalizada e justificada a exploração, exposição, expropriação e todo o tipo de violência simbólica e física aos animais não-humanos e aos “nem tão humanos assim”.
Apesar de elas serem completamente contra a ideia de comparar negros aos animais de espécies que não sejam homo sapiens, muita gente não compreendeu sua proposta teórica e a reduziu ao slogan equivocado e sensacionalista: “Aph Ko dá um berro ao afirmar que comer carne é equivalente a fortalecer a supremacia branca”. Na verdade é, e não precisamos ser teoricas interseccionais para compreender que a base ideológica de qualquer opressão é a supremacia branca, masculinista, capacitista e imperialista, mas o meu ponto é que o aphro-ism é uma proposta tão radical, isto é, vai à raiz dos conceitos e fenômenos, que a interpretação de texto pode ser um desafio para quem deseja se manter convencional.
Assim como um individuo minorizado está sujeito à violência, não raro, possuem privilégios em algum outro campo que o possibilitam tensionar e fortalecer aquele projeto antropocêntrico. Para Aph e Syl, é exatamente essa visão de mundo colonizadora que justifica a categorização de corpos de “animais” serem comestíveis e invalida a conquista de direitos. Fica evidente, portanto, que as irmãs não estão apenas atacando o hábito individual de comer carne, mas sim, o discurso que viabiliza essa atitude com tamanha naturalidade. Se não é socialmente aceito que comamos nossos amigos, cabe interpelar o porquê de soar natural comer o corpo do animal, bem como seu leite, ovos, além de consumir tudo aquilo que envolve a exploração sem que tenhamos que pensar a respeito “porque, afinal, somos human0s” (ou quase, segundo aquela lógica). Apesar de insistirem na inserção do animal/animalização nas análises e descreverem como o veganismo negro é uma forma de ativismo antirracista, antiespecista e anticapitalista que enfraquece a supremacia branca, o tom é de conversa, de questionamentos teóricos, não aquela abordagem – no geral, do veganismo mainstream – de que “os negros DEVERIAM ser veganos, pois, do contrário são antirracistas hipócritas”. Aph e Syl são feministas, negras, acima de tudo, #BlackGirlMagic propositivas.
Nos primeiros capítulos, há a implosão de diversos conceitos que são assentados em nossa militância feminista e, por mais positivo que seja o tom, a falta de solo firme pra pisar gera um desconforto avassalador. Já no Capítulo 5, Por que a confusão é necessária para envolver o nosso ativismo, Aph não oferece respostas fechadas e concretas, mas convida a explorar este terreno de confusão e instabilidade como desafio, vivenciar o desconforto aberta à mudança de perspectiva, aos novos questionamentos, à confecção de uma nova “prova real” e, por fim, uma arquitetura conceitual que incorpore novas vozes e uma teoria que caminhe junto à prática.
“(…) Porque ativismo é sempre sobre crescimento e aprendizagem, nunca permanecer no mesmo lugar conceitual por tempo demais” (Aph Ko)
Como o nosso foco aqui não são as pessoas brancas, cabe enfatizar que o sistema atinge a todas nós, de modo que a liberação requer que todas ajamos de forma diferente e que reavaliemos nossas atitudes, comportamentos e visões de mundo. Assim como descrevi a importância do autocuidado, de não responder a trolls e beber água sempre, em Será que você sofre da síndrome da discussão racial fadigosa, Aph e Syl sugerem que paremos de agir como faxineiras de espaços virtuais de pessoas brancas (Capítulo 2), porque isso só mantém a ordem colonial enquanto nos impede de desenvolver nossa epistemologia para o futuro.
Essa busca por uma nova epistemologia desestabiliza até mesmo o #BlackLivesMatter, não desqualificando sua importância, mas mostrando que ele só arranha a superfície do problema, porque, segundo Syl:
“Se nossa visão artística, nossos empreendimentos teóricos, nossos construtos são completamente desvalorizados e sem lugar no mundo, mais carne e sangue nunca convencerá Ninguém de que nós temos o direito de estarmos aqui” (Syl Ko)
Bem, eu sou vegetariana há alguns anos e, apesar de não consumir carne, mas sim os derivados de leite e ovos, fui levada a pensar um pouco diferente. A maioria dos alimentos convencionalmente considerados sofisticados, fora a socialização em si, são baseados em comer carne; sair para comer em lugares convencionais, ou até mesmo na casa de familiares vira uma questão de incômodo para a maioria das pessoas. Se você é uma mulher, possivelmente esta mudança na dieta se torna perceptivelmente política em ambientes familiares, porque todos questionam os porquês da nossa escolha, se você está substituindo a proteína anima, então começam a argumentar com base em falsa-simetria (por exemplo, passam a ver as plantas como seres vivos tão sensíveis quanto os animais que mais a frente comerão), insistem que somos radicais, “que é uma fase” e que, ele ou ela “não consegue comer/não consegue cozinhar sem carne”. Esse festival de privilégio “humano” informa o quanto os achismos são parte inalienável da lógica a qual estamos combatendo. E, particularmente, me fizeram ter consciência das tecnologias de gênero tensionadas duma só vez.
É claro que não existe militância perfeita, mas a autocrítica pontuada por Syl, em sua jornada de consciência racial, indica a importância de focar na trajetória. Incluir os conceitos de humanização/animalização deve estar somado à abrir-mão de não pensar sobre as opressões, isto é, não basta não comer carne, se você não enxerga problemas em Pokémon-Go. Embora nós não sejamos criadoras dessa lógica colonizadora, o fato de pertencermos a grupos minorizados não nos inibe de reproduzir discursos que fortalecem a matriz de opressões (mesmo que tomando performance de branquitude emprestada a juros).
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Aph Ko |
Ainda que apresentem o veganismo negro como uma proposta política mais eficaz que a maioria das outras, Aph e Syl Ko não ignoram as dificuldades de seguir contra a corrente de convenções, e isso é muito animador. Não raro, as formas de militância de pessoas oprimidas são tão ansiosas por mudanças que acabam agindo de modo impositivo, revirando os olhos e colonizando a qualquer preço e reduzindo seu caráter propositivo, dialógico e construtivo. Generosidade de compartilhar conhecimento é o completo oposto de BrancoExplica e de OmiExplica, que desejam impor o que é melhor para nós; dito isso, Aph e Syl insistem que uma horizontalidade radical em todos os sentidos, afinal:
“Na nossa imaginação cultural, a pior coisa que se pode ser é um animal. E ninguém sabe disso melhor que os negros, que há gerações são chamados de animais pelos brancos, são maltratados e torturados” Aph Ko via HuffPost
Em suma, o tom de conversa nos capítulos nos convidam a nos apropriarmos de aportes próprios, dialogando de maneira efetiva com a teoria, a cultura pop e nossas práticas cotidianas. Com uma linguagem acessível e evidente rigor acadêmico, as irmãs Ko bagunçaram as minhas convicções tão profundamente que não demorei a compreender que “confusão é um sintoma da descolonização”. E é por isso que recomendo a leitura, mesmo para quem está menos familiarizada com o inglês: não há como ser a mesma depos do Apho-ism, nem em teoria, nem em prática.
REFERÊNCIAS
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do”sexo” in LOURO, Guacira Lopes. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 2.ed. (Compre aqui).
KO, Aph; KO, Syl. Aphro-ism: Essays on Pop Culture, Feminism, and Black Veganism from Two Sisters (English Edition). New York: Lantern Books, 2017. (Compre aqui)
ja quero ler, preciso aprender a ler em inglês urgente