Olha, admitir que ele “foi catapultado” soa racista porque ignora a sua agência e, sobretudo, a qualidade do seu trabalho. De qualquer maneira, eu não sou do tipo que se atém às personalidades, minha intenção neste texto é de compreender o contexto de produção e o pensamento que dá forma ao novo Pantera Negra.
(Entre o mundo e eu, Kindle: Posição 66).
Diferente de Obama – claro – ele não foi eleito presidente, mas sim ao cargo daquele que viria a discordar do modo mais inteligente possível durante os dois mandatos em sua coluna na revista
The Atlantic. Dentre as suas críticas, cabe destacar a que diz respeito ao universalismo do “
ObamaCare” (Lei Federal que visa controlar os preços e serviços de planos de saúde); em seu artigo
A Imoralidade do ObamaCare (2013), Coates argumenta que a ausência dum critério racial é imoral porque em vez de garantir o benefício para população negra, que é mais necessitada, possibilita melhoria apenas para a população branca da classe trabalhadora.
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Cornel West (esquerda) e Ta-Nehisi Coates (direita) |
Embora a visão sobre o futuro dos EUA na escrita de Ta-Nehisi Coates tenha em vista a supressão do “Sonho americano” (
american dream), ele não oferece nenhuma alternativa. Assim, uma das vertentes da crítica ao seu pensamento, encabeçada pelo professor de filosofia, em Harvard, Cornel West, interpelou seu “
pessimismo apolítico” num artigo intitulado
Ta-Nehisi Coates é a cara do neoliberalismo da luta negra por liberdade (2017). Para West, falta a Coates uma crítica mais severa à elite negra que busca se encaixar na política neoliberal e, para tal, não se importa em combater a pobreza ou a transfobia de forma efetiva.
West completa:
A discordância entre mim e Coates é clara: qualquer análise ou visão de mundo que omite o poder de Wall Street, da polícia militar e as complexas dinâmicas de classe, gênero e sexualidade na América Negra são deveras estreitas e perigosamente enganosas. Esta é pois a visão de mundo do Ta-Nehisi Coates.
Se, por um lado,
Ta-Nehisi Coates se opõe àquela ética cristã, encarnada por Martin Luther King Jr. e a “respeitabilidade” pregada pela
Associação nacional para o progresso de pessoas não-brancas (NAACP), por outro, ao afirmar que
“Por oito anos, Obama caminhou no gelo, mas nunca escorregou”, se tornou alvo de sua própria crítica, afinal, ele reconhece os benefícios da representatividade que somente um presidente negro dos EUA pode trazer. O fato de Coates reconhecer que Obama era um presidente, não um cidadão qualquer, e que, proporcionalmente, assumia uma postura e discurso otimista, moderado e modulado para cada público por motivos de sobrevivência fez com que a esquerda pra além do ex-presidente e do jornalista causasse mais uma curiosa dicotomia entre indivíduos negros do
showbiz. Bem, por mais bem-fundamentados que sejam os argumentos de West, o fato do ativista de extrema direita
Richard Spencer endossar torna tudo mais complexo, fato que
levou Coates a deletar seu twitter na época.
É perceptível que, na verdade, “o ataque” de West é muito mais direcionado à política de identidades como um todo, que ao jornalista em si. Noutras palavras: “trajetórias políticas não são personalizadas, mas são personificáveis”. O fato de Coates ancorar o pensamento na sua trajetória não tem em vista estabelecer uma verdade ou modo correto de pensar, mas sim uma alternativa ao modo de se refletir sobre a experiência de ser um homem negro nos EUA.
Ávido leitor de nacionalistas negros dos anos 1960, bem como de feministas negras, sem dúvidas, a escrita de Ta-Nehisi Coates entrelaça o
lugar de fala “ideal no âmbito da negritude” a uma estrutura confessional, lírica e incisiva. Por mais alinhado que ele esteja com o pensamento político de Malcom X – nacionalismo, mas desvinculado da religião – retoma a prosa e a compreensão de
James Baldwin, que foi repelido da militância negra à época dos direitos civis por ser gay. Em
Entre o mundo e eu, Coates constrói uma (aparente) terceira via para a dicotomia “King
versus Malcom”, ao reconhecer a interseccionalidade e a brutalização dos corpos negros que acumulam vulnerabilidades (gênero, classe, sexualidade, “capacidade”, etc).
Digo “aparente”, pois ele afirma que, após todas as reflexões, se identifica com o nacionalismo negro, embora com as críticas proporcionais ao tempo de
#blacklivesmatter e
#blackgirlmagic. Noutras palavras, com o avanço dos direitos, atualmente se tornou inaceitável uma militância negra que seja misógina, LGBTfóbica, capacitista e gordofóbica. Não estou dizendo que não exista, apenas observando que vivemos num contexto diferente dos anos 1960, portanto, deveríamos ter mais bom senso.
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Ta-Nehisi e seu filho Samori |
A franqueza de sua autocrítica em Entre o mundo e eu chega ao reconhecimento de que seu corpo é vulnerável por ser negro, mas que existem fronteiras exteriores a isso, que permitem a ele (pela sociedade) violentar outros corpos. A belíssima escrita, somada às verdades sombrias da vida como ele é, constroem uma argumentação sólida e bastante convincente. Sua sobriedade reside na compreensão de que religiosidade, respeitabilidade e luta armada não são a solução na atualidade, porém, a essência de seu nacionalismo esbarra num tipo de sionismo que brutaliza, destrói e descarta corpos palestinos.
A ideia de reparação material para a população negra é provocativa e bastante lógica, sobretudo se tomarmos os fatos e evidências históricos, tanto da escravidão, quanto da sistemática expropriação de bens. A dor histórica não é mensurável, mas condições materiais pavimentam mudanças simbólicas e estruturais. Precisamos apenas ter em mente que, ainda que os poderosos se propusessem a distribuir a renda total, não faz sentir usar este utópico poder para destruir outros.
A lógica não pode ser essa.
Pra mim, a força do pensamento de Ta-Nehisi consiste na compreensão do que significa ser homem e negro num sistema fundado a partir da corporificação, desumanização e destruição de indivíduos classificados como “negros”. É inteligente o modo como ele aborda a ficção da raça/gênero e suas implicações reais, tensionando a fundação cristã de Luther King: “Por que — para nós e apenas para nós — o outro lado do livre-arbítrio e do espírito livre é um ataque a nossos corpos?” (Entre o mundo e eu. Kindle: posição 376). Se explicações espirituais para o massacre da população negra sempre recaem numa eterna espera pela reparação além-vida, Coates alega que a realidade de ser uma pessoa negra é estar presa à materialidade do corpo e aprender a se responsabilizar por ele desde tenra idade. Tal “injustiça cósmica” causa uma revolta proporcional que o levou a se questionar:
Por que somente nossos heróis eram não violentos? Não estou falando da moralidade da não violência, mas da percepção de que os negros têm uma necessidade especial dessa moralidade.
(Entre o Mundo e eu, Kindle: posição 431)
A realidade da corporificação é aquela em que pessoas negras são, diariamente, silenciadas e descartadas e ninguém responde por tais crimes, portanto, nada mais natural que a revolta. Para Coates, o teísmo nega a história de injustiça e domestica as vítimas dela enquanto fortalece o
status quo. Ele é completamente lúcido ao afirmar que o Sonho – o subúrbio, a cerca branca, os dois filhos – não nos salvou antes e que esta moralidade burguesa branca não encaixa com a negritude, portanto, nunca nos salvará (o capitalismo não nos salvará). Nosso mundo ainda é de violência e de risco de destruição de corpos e subjetividades negros; por esta razão, é importante sentir o desconforto, refletir e buscar seu próprio sonho – fora dos limites da
branquitude.
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Capa de Pantera Negra Vol. 1, por Brian Stelfreeze (Detalhe) |
PANTERA NEGRA (2016)
Pantera Negra foi criado em 1966, na revista do Quarteto Fantástico, marcando sua ancoragem no contexto histórico de luta pelos direitos civis nos E.U.A, mas durante a maior parte da cronologia Marvel não esteve nos grandes eventos. A despeito de sua encarnação de fantasias de poder de homens negros, o Pantera Negra foi submetido a escolhas de editores e escritores que levaram a humilhação para a – até então – orgulhosa Wakanda.
Para
Ta-Nehisi Coates, a invasão que ocorreu em
Vingadores Versus X-Men (2012) não poderia ser ignorada, mesmo após as
Guerras Secretas 2 (2015) porque se viu na responsabilidade de discutir todos os temas que a quebra da perfeição proporcionou. Como grande fã de quadrinhos, sem dúvidas, ele estava ciente de isso poderia ser revertido com
reboot,
retcon e outros recursos disponíveis aos super-seres, mas lhe pareceu coerente explorar a queda, a matiz de sofrimentos e, assim, descrever a profundidade do personagem para além de “governante” e de “herói”.
Desde a criação e no seu ápice, com roteiros de
Reginald Hudlin, os fãs tem se habituado a ver um herói invencível perpetrando uma masculinidade, muitas vezes, tóxica e sentirem-se identificados com isso. O fato de
Uma Nação Sob Nossos Pés não focar batalhas, glória e perfeição, portanto, gerou bastante frustração em fãs antigos; apesar disso, Ta-Nehisi foi categórico:
“É terrível dizer, mas eu não posso me responsabilizar pelos fãs. Não posso escrever pra eles” (COATES
via Io9).
Todo mundo lê quadrinhos atraído pelo poder que sobra ou falta, projetando e/ou refletindo sobre “o real”, portanto, inserir discussões que revigoram a linguagem e contribuem para mudanças substanciais na forma de pensar heróis e heroínas. Por esta razão, simplesmente re-estabelecer Wakanda impediria a exploração da subjetividade de T’Challa e as mudanças substanciais na estrutura de poder, sobretudo no que tange as Dora Milaje. A
bandeira Vermelha, Preta e Verde continua ocupando um lugar central de Wakanda, mas velhas crenças e hábitos do país foram implodidos pela população descontente com a governabilidade de Shuri e T’Challa.
Entre o dever para com o seu povo e a necessidade de manter sua própria família a salvo, T’Challa se vê líder dum império esfarelando sob seus pés. Dentre as várias fissuras, cabe destacar a reivindicação das mulheres wakandanas pela segurança de seus corpos; a descentralização do poder como consequência da humanização de T’Challa possibilitou o desenvolvimento de diversos arcos, inclusive os
spin-offs:
Pantera Negra: O Mundo de Wakanda e
Pantera Negra e o Bando (não publicados no Brasil até o momento), ambos co-escritos por mulheres Negras. Ta-Nehisi abriu espaço em
O mundo de Wakanda para Alitha Martinez,
Afua Richardson, Roxane Gay para construírem uma perspectiva inédita do país: a experiência de mulheres, em especial lésbicas, enquanto a parceria com Yona Harvey explorou a solidariedade diaspórica e os problemas que enfrentamos diariamente. A despeito de terem sido cancelados, esses títulos representam um avanço considerável na participação de mulheres Negras no mercado de quadrinhos.
As críticas mais ferrenhas à
Uma nação sob nossos pés tem sido direcionadas por indivíduos que desconhecem o pensamento de Coates. É realmente muito mais literário do que se espera de quadrinhos de super-herói, mas se todos esses rapazes são fãs de Alan Moore, me parece que o incômodo é o fato de este novo Pantera Negra trazer conceitos, referências e uma série de complexidades que não fazem parte da visão de mundo e imaginário de
indivíduos brancos. Sem dúvidas, ser uma mulher Negra não me garante compreensão imediata, mas você pode ter certeza de que depois da leitura de
Entre o mundo e eu, tanto os quadrinhos, quanto a vida fizeram muito mais sentido – no final das contas,
a Marvel não convidou nem Roxane Gay nem as demais para a première de Pantera Negra, mas convidou o Ta-Nehisi Coates. Estamos fora de novo!
TEXTOS CONSULTADOS
COATES, Ta-Nehisi. Entre o mundo e eu. São Paulo: Objetiva, 2015.
______.Obamacare and the Conscience of a Radical(2013).
______. NÃO CONTROLAMOS O DESTINO DE NOSSOS CORPOS (2015).
______.MEU PRESIDENTE ERA PRETO (2017)
DAVIS, Angela. An autobiography (1989).
KHALEK, Rania. Ta-Nehisi Coates sings of Zionism (2016).
PINCKNEY, Darryl. The Anger of Ta-Nehisi Coates (2016).
NARCISSE, Evan. Ta-Nehisi Coates Explains How He’s Turning Black Panther Into a Superhero Again (2016).
WALLACE-WELLS, Benjamin. The Hard Truths of Ta-Nehisi Coates (2015).
WEST, Cornel. Ta-Nehisi Coates is the neoliberal face of the black freedom struggle (2017)
Bom dia, Anne.
Achei seu texto na internet por um acaso e achei um dos melhores que vi nos últimos tempos. Parabéns e obrigado pelas reflexões!
Axé!