O QUE É ENCARCERAMENTO EM MASSA?
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O Segundo título da Coleção Feminismos Plurais já está disponível! |
A reflexão sobre abolição penal chegou, para a maioria de nós, por meio de livros da filósofa Angela Davis, senão pelo do documentário 13ª Emenda (Ava DuVernay: Netflix, 2016). De uma forma ou de outra, é difícil, num primeiro momento, compreender a conexão entre a pauta estadunidense e a brasileira quando falamos de sistema prisional.
É com o objetivo de nos convidar a compreender essa lacuna que Juliana Borges partiu do histórico do aprisionamento da punição até a questão em aberto: como construir um mundo sem prisões?
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Última Parada 147 (2008) é um filme de ficção baseado na vida de Sandro Barbosa do Nascimento, um sobrevivente da Chacina da Candelária (1993), que em 2000, sequestrou um ônibus e manteve reféns. Este filme foi meu primeiro contato com a reflexão a respeito do sistema prisional e sua conexão com as desigualdades sociais. |
PANORAMA HISTÓRICO
As prisões são as únicas possibilidades de ralação entre a sociedade e um indivíduo que, supostamente, tenha quebrado um acordo social? E quais são os parâmetros para esse acordo? Quem escreve, testemunha, assina? É possível questioná-lo?
Antes de responder ao questionamento que dá nome ao livro, Juliana Borges historiciza a punição e o modo como ela se desenvolve até o presente. Ela parte da raiz da naturalização do discurso da tortura, que são os quatro séculos de escravidão da população negra, e desenvolve o raciocínio destrinchando um aspecto ainda pouco discutido: a mestiçagem.
Mestiçagem foi uma política de Estado ancorada em teorias iluministas que prescreviam o embranquecimento como uma estratégia de melhoria social. Segundo tais teóricos, à medida que a miscigenação fosse difundida no Brasil, a população se tornaria gradualmente não-negra até alcançar o objetivo. Esta ação se deu a partir da abolição, quando os negros foram descartados e europeus foram incentivados a imigrar para o País.
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Imagem: Documentário 13th/ A 13ª Emenda (2016) |
Sem dúvidas, uma nação que se desenvolveu a partir da exploração, comercialização e destruição do povo negro, tem o histórico de controle e de punição deste grupo social. Assim, a mestiçagem foi uma rearticulação da dinâmica social cujo intuito foi o de manter exclusão e impedir que a população negra pudesse transpor a subalternização por meio da negação aos direitos básicos (educação, saúde e moradia).
É curioso que, para a maioria da população brasileira, o racismo existe, mas dificilmente alguém se identifica como racista. Com isso, fica evidente que a suposta democracia racial é uma falácia. E a quem ela serve?
Quem se serve – noutras palavras, mantém os privilégios – são aqueles que descrevem o código de regras, prescrevem o que é crime, como e quem deve ser punido. Aliás, no Brasil, reina a ideia de que existe impunidade, embasado na ideologia do encarceramento, mas isso só é válido se apagar o fato de que a população carcerária aumentou 707% desde 2006 (ano em que foi aprovada a Lei de Drogas).
Diferente dos EUA que tiveram as leis de Jim Crow, que puniam pessoas negras de forma física, psicológica, econômica e moral pelo simples fato de serem negras, no Brasil, a hierarquia racial e as desigualdades sociais são consequência de “leis não escritas”, ou do famoso “racismo à brasileira”.
Borges também contextualiza os dispositivos usados para criminalizar a capoeira, os terreiros e as revoltas da população negra pós-abolição, assim como o aspecto moral que conecta “negritude, maldade e propensão ao crime“. É essa sequência associativa que sustenta o imaginário do “criminoso” como alguém que “merece ser punido”, semelhante ao jargão “bandido bom é bandido morto”. Nesta frase, está embutida uma seletividade
O QUE O FEMINISMO NEGRO TEM A VER COM O ENCARCERAMENTO?
68% das mulheres encarceradas são negras, e 3 em cada 10 não tiveram julgamento, consideradas presas provisórias. 50% não concluíram o ensino fundamental e 50% são jovens, sendo esta média de mulheres em torno de 20 anos.
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A série Orange is the New Black apresenta a conexão entre racismo/misoginia e encarceramento em massa, mas não discute com seriedade. Por mais avanços que possa apresentar numa perspectiva do Teste Bechdel, sua estrutura é tão racista quanto a política de estado as Américas. |
A autora também aponta a Guerra às Drogas como fundamental para o aumento do encarceramento e reafirmação das práticas que levam à manutenção de hierarquias raciais. Ela demonstra que isso é evidente se levarmos em consideração que 62% das mulheres encarceradas estão respondendo por crimes relacionado às drogas, em especial, o tráfico. Nesta perspectiva, o aprisionamento de individuas que comercializam está longe de ser uma ação efetiva no que diz respeito ao fim do tráfico.
No último capítulo, intitulado Um mundo sem prisões: a verdadeira abolição é a luta das mulheres, Juliana Borges conclui que a abolição penal é pauta central para a libertação plena da população negra e, por esta razão, é central aos feminismos negros. A lógica de marginalização, negação de direitos básicos e corporificação associados ao racismo econômico criam uma teia que leva ao tráfico de drogas (bem como outras tipificações), e ao aprisionamento. Por esta razão, é imprescindível que saiamos do raciocínio punitivista convencional e passemos a imaginar e propor um mundo sem prisões.