[GUEST] [TRADUÇÃO] O Frequente Trauma de se Relacionar Sexo-afetivamente sendo Negra
O Frequente Trauma de se Relacionar Sexo-afetivamente
sendo Negra*
invenção branca-ocidental, parece que a não-monogamia é constantemente moldada de forma
que centraliza a branquitude. Apesar do número de pessoas negras, inclusive eu, que participa
de acordos não-monogâmicos ou que não tem objeções a eles, há, muitas vezes, uma grande
resistência de nossa parte a um enquadramento no poliamor apresentado em discussões mais
corriqueiras. Eu concebia tais práticas românticas “esclarecidas” como um meio de evitar as
diversas dinâmicas racializantes e gendrantes desconfortáveis que eu já havia experimentado
em relacionamentos anteriores.
Mas o fracasso em descentrar a branquitude e as normatividades violentas imbricadas
nela significou, pra mim, que estes espaços ainda se configuram como mais uma constelação,
onde minhas necessidades, como uma mulher negra namorando dentro do cis-heteropatriarcado,
não eram ouvidas, tampouco satisfeitas.
casamentos, “fetiche de corno/a (1) ” , poli-fidelidade, poliamor ou poligamia, e a anarquia
relacional (2) . Da maneira como tenho tanto praticado quanto entendido, a não-monogamia se
destina a ser um relacionamento dissidente que subverte a “natureza” possessiva da
(1) Cuckoldry em inglês, ou fetiche em ser traído/a é quando um/a parceiro/a tem prazer em ver seu/sua parceiro/a
tendo relações sexuais com outra pessoa. Cuckold literalmente significa corno/a. Entretanto, diferentemente da
conotação mais conhecida do termo, no âmbito do fetiche a/o corna/o é cúmplice da “infidelidade” seu/sua
parceiro/a.
(2) É a prática de formação de relacionamentos que não se constituem por e não se vinculam à normas além do que
as pessoas envolvidas mutuamente concordarem. Se um relacionamento anarquista tem vários/as parceiros/as
íntimos, ele pode ser considerado como uma forma de poliamor, mas distingue-se pela premissa de que não
precisa ser uma distinção formal entre as relações sexuais, românticas ou platônicas. Anarquistas relacionais
olham para cada relacionamento (romântico ou não), individualmente, ao contrário de categorizá-los de acordo
com as normas da sociedade, tais como “apenas amigos/as”, “em um relacionamento”, ou “em um
relacionamento aberto’.
monogamia.
Eu, pessoalmente, a prefiro, embora também possa facilmente ter relações com
um/a único/a parceiro/a. Imagino relacionamentos amorosos divorciados do capitalismo, um
sistema econômico baseado na ideia da concorrência acirrada por recursos escassos e (às
vezes artificialmente) finitos. Dentro da lógica capitalista, o amor torna-se, de certa forma, um
recurso finito, e nós frequentemente reduzimos nossa capacidade de amar à esta ideia de
escassez.
Tão grande quanto este colapso da mensagem capitalista sobre relacionamentos pode
ser, também a integração e a prática frequente desta “não-monogamia ética” – ou seja, práticas
baseadas em acordos e em formas consensuais nas quais se pode explorar o amor e o sexo
com várias pessoas – continuam bastante problemáticas. Da mesma maneira em que
construções tradicionais falham em eliminar a supremacia branca, muitas pessoas brancas
praticam “eticamente” a não-monogamia de formas que perpetuam a mercantilização de
seus/suas parceiros/as não-brancos/as.
Ao longo da minha vida – possivelmente por conta das minhas próprias aspirações
internalizadas por proximidade à branquitude – me relacionei quase exclusivamente com
homens brancos heterossexuais e cisgêneros. E, apesar das disposições políticas alegadamente
progressistas desses homens, eu sempre me sentia sexualizada e objetificada de formas
desconfortáveis e violentas.
Já fui objeto da fetichização clássica mais evidente quando falavam o quanto amavam
meu corpo racializado. Variou de um parceiro me dizendo o quanto ele amava a visão de
mulheres negras em sua cama, para outro que me disse o quanto gostava de ter mulheres
feministas negras submetendo-se a ele, e um parceiro dinamarquês que me dizia
constantemente o quanto ele amava minhas “coxas africanas” ou meus “lábios carnudos
africanos” (engraçado que ele nunca me disse o quanto também amava meu “cabelo africano”
crespo, encarapinhado(3) ).
Já rolou também aquela objetivação mais sutil: este tipo é mais praticado por homens
radicais e progressistas, homens que senti estarem mais interessados em minhas opiniões
políticas do que na totalidade da minha condição de mulher*. Estes são os homens que têm
que “aprender” a namorar mulheres* negras: homens que me transformaram em seu projeto
pessoal de educação política, homens que exaustivamente solicitavam que eu explicasse as
políticas do
(3) Sobre cabelo encarapinhado: <ameseucrespo.blogspot.com.br/2012/03/cabelo-cacheado-ou-cabelo-encarapinhado.html >.
meu feminismo negro (4) como que para preencher uma lacuna nas políticas deles, homens que
ficavam sintomaticamente em silêncio quando comentários racistas eram feitos por seus
amigos/as, enquanto eu era a única pessoa negra no espaço, homens que sempre
mencionavam “o que sua namorada negra radical” pensa sobre um determinado tópico,
mesmo (e desavergonhadamente) na minha presença.
Eu me sentia como um dos dois itens de algum colecionador: uma versão da Barbie
coelhinha sexy, elegante e selvagem puramente para prazeres privados ou para desfilar em
público, ou então como uma Barbie sexy e enigmática da Angela Davis distribuindo
conhecimento sob comando. Às vezes me sentia como as duas coisas ao mesmo tempo: como
uma enciclopédia transável, pronta para ser aberta e consumida à vontade. Muitas vezes me
senti como um acessório: um dos “valiosos”, mas mesmo assim como algo em exposição e
dispensável.
Pessoas brancas que praticam a chamada não-monogamia “ética”, mas ainda tratam
mulheres* negras como cartões comerciais, estão apenas aproveitando da pseudo-liberdade
que estas relações proporcionam às pessoas envolvidas. Ao invés de valorizar mulheres*
negras como seres completos e complexos, somos reduzidas ao capital social-liberal aparente
da proximidade à Negritude. Tornamo-nos uma espécie de realização superficial para
muitos/as, um símbolo de status que incentiva nossos/as parceiros/as brancos/as a nos exibir
por aí como prêmios para mostrar apenas quão “cabeça-aberta” eles/elas são. Mas para
eles/elas, estar em um relacionamento não-monogâmico com uma mulher* negra não é o
mesmo que tratar a referida parceira com o cuidado, honestidade e respeito que ela merece.
Uma trepada casual não é um/a parceiro/a. E nem o capitalismo, tampouco as convenções de
relacionamentos conservadores são prejudicados quando Negritude e “alteridade” racializada
continuam a ser uma mercadoria (há algo um pouco problemático em dormir com seu
opressor).
(4) O termo usado pela autora é womanist feminism. Segundo Raquel da Silva Barros (2011) “O Womanism está
diretamente relacionado ao “feminismo negro”, bem como à preocupação com o bem-estar e a integridade de
todas as pessoas, homens e mulheres.” Mais sobre o termo em: <www.africaeafricanidades.com.br/documentos/14152011-16.pdf e
https://quilombouniapp.wordpress.com/2012/03/22/africana-womanism-o-outro-lado-da-moeda/>.
Esta manutenção invisibilizada e respectiva perpetuação da supremacia branca em relações
monogâmicas padrão continuam a marginalizar participantes não-brancos/as de relações nãomonogâmicas.
Não existe uma cartilha sobre como abrir relações para incluir de forma segura
e acomodar em círculos e discussões tradicionais indivíduos racializados, nem transgêneros
ou parceirxs não-binários, nem pessoas com diversidade(s) funcional(is), tampouco
parceiros/as assexuados/as, sobreviventes de abuso ou outros/as parceiros/as com identidades
vulneráveis.
Pelo contrário, vemos um quadro dominante da não-monogamia que muito frequentemente
recria normatividades cis, capacitismo e supremacia branca e onde vemos ambos/as
parceiros/as primários/as e não primários/as tratados/as de formas que imitam violências
discursivas cotidianas.
Descolonizar o amor – e isso deveria ser central em qualquer tipo de relacionamento
eticamente não-monogâmico – envolve não somente a remoção dissidente do amor de seu
pedestal de finitude, mas também a extensão das hierarquias de identidade que reificam
hegemonias. Este processo de descolonizar nosso amor e nossos relacionamentos significa
reconhecer as maneiras pelas quais relações poliamorosas centralizam a branquitude, por
exemplo, ao ‘colecionar’ parceiros/as com identidades marginalizadas como se fossem cartões
comerciais de diversidade, e/ou ao valorizar parceiros/as pelos diversos modos que eles/elas
possam impulsionar o capital social e político, bem como seu rótulo de “radical/liberal”.
Esta não é minha declaração autorizada e autoritária de que eu nunca vou namorar um
homem ou uma mulher branco/a de novo, nem sou eu dizendo que é impossível que homens
brancos possam vir a ser parceiros/as decentes para parceiros/as racializados/as (e eu sei o
quanto estou massageando o ego incrivelmente frágil da masculinidade hegemônica branca ao
dizer isso). Mas sou extremamente cautelosa em me aventurar em relacionamentos
românticos com eles – e mais desconfiada ainda de como eu poderia ser tratada em um
relacionamento não-monogâmico – por conta justamente de minhas experiências contínuas e
consistentes de namorar a supremacia branca. Se queremos realmente descolonizar nossas
relações e nossas camas, devemos reconhecer como internalizamos a hierarquização e
objetificação de identidades marginalizadas e racializadas em nossas vidas pessoais. Só desta
forma poderemos realmente criar tais relações equitativas e horizontais que esta proposta
defende.
Ué… Você não tinha notado antes que não adianta condenar o "patriarcado"? Que apenas trocar de plataforma ideológica e social não nos livra de nada? A propaganda por aí não é essa.