Tomb Raider: ver uma protagonista forte é sempre libertador?

Lara Croft (Alicia Vikander)
Alicia Vikander é a Lara Croft

( Foto: Divulgação Warner)
Análise com Spoilers

por Anne Caroline Quiangala


DA CARTADA ASSERTIVA NOS GAMES…

O reboot da Lara Croft nos games foi ovacionado com razão. Finalmente – para aquelas de 1990 -, a representação feminina levou em consideração experiências possíveis e não apenas o público-alvo masculino presumidamente heterossexual. Falhas grosseiras como a hipersexualização, a sexualidade como arma e a morfologia irreal foram evitadas e, finalmente, um número expressivo de mulheres se sentiu representada. 
Além disso, o roteiro de Rhianna Pratchett insere a jogadora numa trama interessante, envolvente, transformadora e estruturada por belíssimos recursos visuais e de jogabilidade. Tudo isso elevou a hype para o filme, mais do que as experiências anteriores, tanto com a franquia, quanto com filmes baseados em jogos no geral. Qual o meu veredicto de Tomb Raider: Origem?
Lara Croft
Tomb Raider: Origem busca reescrever a reputação de filmes baseados em jogos

( Foto: Divulgação Warner)

… À REDENÇÃO FÍLMICA

Os trailers de Tomb Raider: Origem não revelaram mais do que conhecíamos dos jogos. A reconstrução de cenas marcantes dos game, assim como o tema “Survivor” das Destiny’s Child, conduziram para uma expectativa de o filme recontar a história do game ou de se apropriar da maior parte dos elementos. Entretanto, o filme surpreende ao juntar elementos do jogo com novos fatos. Neste sentido, cabe lembrar que houve uma atenção especial à continuidade e aos elementos.
Na primeira porção do filme, conhecemos essa nova Lara (Alicia Vikander), de luto pela morte do pai e abrindo mão de sua herança por negar isso. Ao longo do filme, diversos flashbacks nos revelam aspectos da relação da heroína com o pai, perícias e traços da personalidade que encaixam perfeitamente no seu tempo presente. Por exemplo, numa das passagens, conhecemos o lado afetivo e o prático de sua habilidade com arco e flecha, respondendo antes de questionarmos por que ela opta por isso em vez de metralhadoras.
A narrativa principal é a busca de Lara pelo pai, Richard Croft (Dominic West), que desapareceu em meio a uma expedição. Com este intuito, ela embarcou no último destino, a ilha japonesa “inabitada” de Yamatai a bordo da embarcação Endurance, e sua tribulação bastante reduzida em relação aos jogos. Diversos percalços são enfrentados pela heroína e o capitão Lu Ren (Daniel Wu), dentre eles o encontro com a ordem da Trindade (presentificada pelo vilão Mathias Vogel/ Walton Goggins) e a invasão do túmulo da rainha Himiko.
Lara Croft (Alicia Vikander)
( Foto: Divulgação Warner)

A DIALÉTICA DOS AVANÇOS


É bastante prazeroso observar que, ao menos de 2015 para cá, houve um salto significativo em relação ao modo como mulheres são representadas no cinema blockbuster. Mulheres independentes como a Furiosa (Charlize Theron), Rey (Daisy Ridley) e Mulher Maravilha (Gal Gadot) não fazem questão de performar uma feminilidade convencional ou de esconder sua força e isso pavimentou caminho para discutir a complexa trama do que significa mulheridade.
Cabe lembrar que os filmes anteriores da franquia Tomb Raider, tal como seus jogos, partiam duma ênfase no corpo e num uso específico dos “atributos femininos”. Além disso, Lara materializava uma série de perícias físicas, mentais e acadêmicas que a tornavam um modelo feminino único e inalcançável no gênero aventura. Será que o reboot possui uma orientação mais feminista?
Não existe consenso sobre o que é ser mulher forte, feminista ou simplesmente mulher, mas no caso específico da Lara Croft em Tomb Raider: Origem é possível observar uma honestidade em seu caráter, tanto no modo como ela foge dos modelos de donzela em perigo e de super-racional. Não existe um imperativo de perfeição, mas os demais elementos estão lá: coragem, intuição e instinto de sobrevivência. Ser mulher não a torna metonímia (exemplo do que é seu gênero como todo), não a desmerece como personagem e nem força uma simbólica guerra dos sexos. A personagem em si é, portanto, um modelo inspirador para jovens mulheres. 
A introdução do filme foca na personalidade jovial e divertida de Lara, bem como explica sua resistência física.

( Foto: Divulgação Warner)
No caso de Lara, a autoconfiança proveniente da relação com o pai, somada ao fato de viver numa capital multicultural e multiétnica funciona descrevem o porque ela age com inabalável altivez e mantém relações saudáveis com pessoas racializadas. Embora ela não seja particularmente preconceituosa, o discurso do filme como um todo leva a isso.
Logo de início, os marcadores sociais cercam a identidade de Lara, sem falas expressas. Na passagem em que ela está lutando boxe na academia conhecemos sua amiga Sophie (Hannah John-Kamen) que “não é branca”, a sua algoz, que “não é heterossexual”, e o dono do estabelecimento, que  “não é rico”. Apesar da passagem revelar muito do comportamento, humor e forma como Lara se relaciona, diz muito mais sobre ela ser diferente daquelas pessoas (branca, heterossexual e rica) as quais decidiu estar junto e tolera bem. 
Em seguida, descobrimos realmente que ela decidiu viver por conta própria o que leva a experiências como a de ser entregadora e se entregar a desafios por dinheiro. Isso coloca a personagem em primeiro plano e sugere um certo gosto pelo exótico que se desenvolverá em Yamatai. É evidente, nós sabemos que o próprio conceito da personagem – uma invasora de túmulos – diz respeito a um imaginário colonizador, mas, no momento em que vivemos, a bravura de Lara poderia servir para algo além de menosprezar feminilidades não-brancas e plantar shipping inconclusivo com dois homens asiáticos.
Por mais significativa que seja a força e a quebra de padrões de gênero performadas pela Lara Croft em Tomb Raider: Origem, enfatizar a busca da verdade pessoal e tomar a atração por homens racializados que não são predadores, masculinistas e chauvinistas como mero comentário mantém o discurso racista. Nem preciso explicar o quanto isso deturpa o sentido do tema Survivor (Destiny’s Childs) que, aliás, nem foi usado no filme. Agora me ocorreu que a única presença Negra (mais uma angry black woman) na franquia de jogos, pode ter sido substituída pela dócil e divertida Sophie.
O filme não privilegia panorâmicas, mas neste enquadramento fica evidente a ênfase na coisificação das pessoas que estão indissociáveis dos objetos, do ar poluído e da desordem.

( Foto: Divulgação Warner)


A ONIPRESENTE ODE À SUPREMACISTA


A chegada de Lara no Japão já cria um texto de oposição entre civilização e barbárie, porque em seus primeiros passos no cais desordenado contrastam com a paisagem londrina de origem. Além da sujeira e precariedade material, não tarda para que uma das passagens mais eletrizantes mostre três jovens japoneses tentando roubar sua mochila repleta de documentos cruciais para a aventura. A passagem não é construída para fazer pensar nas causas daquela situação, em vez disso, correlacionam sujeira, privação e degradação moral.
Assim, para cada asiático heroico, como Lu Ren e o corpo amorfo de pessoas sem nome escravizadas pela Trindade, temos os três jovens que ameaçam a integridade de Lara. Pode-se argumentar que os homens brancos, com exceção do pai de Lara e o advogado da família, representam valores opressivos, a exploração do ambiente, da cultura e das pessoas como modo de obter poder. Entretanto, vale lembrar que na falta de um modelo predominante de masculinidade branca saudável, temos a substituição por uma heroína (branca) elevada e letal. Quem diria que  a imagem duma mulher destemida ainda manteria o status quo!
Quando Lara é capturada por Vogel temos a personificação real do mal

( Foto: Divulgação Warner)
Quando Lara chega a Yamatai é capturada pelo líder da expedição, Mathias Vogel. Motivado pelo desejo de retornar à família, Vogel não poupa esforços para explorar pessoas que foram raptadas para o trabalho escravo, bem como o ambiente. Sua equipe é composta, majoritariamente, por homens brancos, barbudos e musculosos representando uma nuance da “miséria espiritual” que é o machismo. Esse vazio se mostra de forma clara: Vogel é capaz de oprimir, matar e torturar, entretanto, se mostra incapaz de interpretar pistas, imaginar ou intuir qualquer informação adicional, mesmo depois de se apropriar das anotações herdadas por Lara.
A consciência de seu vazio leva Vogel a exigir que Lara se aventure no túmulo junto com ele e seus capangas, o que ela faz, mesmo a contragosto. O grupo conduz Lara para o interior da tumba da rainha Himiko que, reza a lenda, foi enterrada naquela ilha para ter seu poder contido. A Ordem da Trindade ordenou a Vogel que apenas saísse da Yamatai com uma amostra do corpo do cadáver com o intuito de dominar o mundo, mas Lara duvida que exista um sentido sobrenatural nisso tudo.
Quando encontram o túmulo, o ambicioso líder ordena que seus homens abram e recolham amostras. Simultaneamente, Lara observa o ambiente e desvenda a narrativa de abnegação da rainha Himiko. Nesta passagem, uma importante mensagem sobre a História, Arqueologia e a Fenomenologia como áreas do conhecimento responsáveis, muitas vezes, por interpretações errôneas baseadas num local de fala privilegiado. Mediando a relação entre Vogel e os sujeitos sem nome com a rainha e suas mil servas sem nome, ela explica que Himiko na realidade era imune a uma doença e decidiu ser enterrada para impedir o contágio enquanto suas servas também se sacrificaram voluntariamente no intuito de servi-la após a morte.
Os homens “malvados” sentem medo de sentirem medo, fato que tem um efeito cômico.

( Foto: Divulgação Warner)
Quando os capangas tocam no corpo de Himiko eles passam a ter a pele enegrecida, se decompondo e espalhando rapidamente. Neste ínterim, aquela miséria espiritual que se estende ao capanga negro e  seu corpo é punida de forma mais severa, levando-o a um tipo de bestificação. Fica subentendido que se não forem executados, todos poderão se tornar agressivos e bestiais, entretanto, somente ele é mostrado assim. Também é problemático que Lara, simplesmente por ser mulher, entenda a mensagem de Himiko; isso não é equilibrado, já que a rainha está morta. A trama inscreve um suposto elo, naturalizando a compreensão como consequência da experiência de gênero; ao mesmo tempo que aproxima pelo gênero, apaga a diferença substancial que levou a equipe aquele lugar, não a Stonehenge.
Enquanto os personagens brancos contaminados assumem ares de abjeção duma “peste” que enegrece a pele, seus rostos assumem se transmutam num black face e, no sentido literal, são denegridos (= tornados negros). Curioso que até mesmo a franquia Star Wars tem a tradução de “lado sombrio” para escapar de conceituação iluminista, as camadas de avanço em Tomb Raider se recusam a incorporar questões de raça e de classe com seriedade (afinal, branco e rico também é marcação).
Lu Ren e Lara Croft
( Foto: Photo by IlzekKitshoff – Divulgação Warner)
As mulheres asiáticas foram todas silenciadas em massa pela morte, o que é um absurdo já que o filme se passa no Japão, mas a narrativa ao menos acerta ao dissociá-las do meramente sobrenatural e da vilania. Em relação aos homens, mais uma vez recai o estereótipo de “emasculação moral” porque performam uma masculinidade saudável, calma e respeitosa que é sobreposta pela ânsia masculinista branca. Retratar Lu Ren como uma pessoa leal “apesar do contexto” não é suficiente. Aliás, ser um interesse amoro não dá fim ao discurso supremacista do filme, sobretudo quando se é deixado para trás.

EM SUMA

O triunfo de Lara é, sem dúvidas, louvável e sua trajetória quase impecável como acontece com pessoas de verdade. É um avanço mostrar seu corpo realista, lacerado pela realidade brutal em vez de protegido dentro de sua mansão como os de suas ancestrais vitorianas. Além disso, é válido mostrar que nós (mulheres) erramos, nos contradizemos, fazemos escolhas e isso não é um impedimento ao feminismo, pelo contrário. O filme também é repleto de passagens dinâmicas, realmente divertidas, tanto por mostrarem uma mulher como protagonista absoluta dum trailer de ação, quanto por enfatizar o crescimento significativo.
A questão é a postura autônoma de Lara Croft exalar privilégios os quais pavimentam uma narrativa que associa racialidade e privações materiais à honra ou fraqueza exagerados tal como nos anos noventa. Se avançamos como sociedade, o mínimo que deveria ter sido feito em Tomb Raider: Origem era propor representações femininas honestas, não mero checklist de fuga do erro crasso em volta duma heroína solitária. Se engana quem não percebe que Ana é mais um tópico do checklist, afinal uma vilã racializada resultaria num impacto negativo. Para além disso, também temos o poder de agência nas mãos de pessoas brancas. Eu sei, o filme não foi feito pra mim. Mas custava ser menos ofensivo?
Em vez de reforçarem a supremacia por meio dum feminismo branco, o ideal era que discutissem, desmontassem e conscientizassem a respeito de causas e consequências, afinal, o que há de mais aterrador que o poder advindo do acúmulo de capital? Ah, sim, a ode à supremacia.

2 pensou em “Tomb Raider: ver uma protagonista forte é sempre libertador?

  1. Tentei comentar no Instagram mas fui bloqueada por não falar bem da indústria cinematográfica norte-americana. Mas, tudo bem. Coloco aqui meu comentário.

    Muito bom o texto, @pretanerdburning! Ainda não vi o filme exatamente pelo receio do que você também acabou mostrando com sua fala. Depois de Pantera Negra, estou com mais dificuldade de assistir a um blockbuster sem criticar a manutenção do discurso normativo velado do cinema estunidense, porque é possível criar uma película lúcida de ação, sem estereótipos ou manutenção de discurso supremacista enrustido.
    Na verdade, isto é mais sobre quem dirige e/ou roteirista do que sobre não existir espaço para filmes que nos levem a um discussão real sobre diversidade, aceitação e respeito. Ou seja, Hollywood precisa apostar no futuro e não em manter uma fala hermética e irreal sobre o mundo em suas ficções.
    Porque 2018 se iniciou com a valorização de um filme que representava pretos como heróis, vilões mas principalmente, pessoas não estereotipadas. Depois disso, não dá mais para voltar atrás. A ruptura se iniciou e é uma pena que Tomb Raider não fez parte disso.

  2. Olá! Nossa, fiquei chocada com essa informação. Não sabia que o instagram tinha esse tipo de política, mas obrigada por comentar aqui!

    Realmente Pantera Negra mudou o paradigma sobre o modo como encaramos a cultura pop. É possível criar aventura sem ofender e sem discurso supremacista, mas existe um desejo profundo desse grupo em reafirmar seus ideais nocivos ne? Pra mim foi uma pena Tomb Raider seguir por esse rumo, mas, pra compensar, hoje assisti Círculo de Fogo e pude me divertir finalmente!

    obrigada pelo feedback!
    beijo!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.

Rolar para o topo